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Várias linguísticas,uma epistemologia da linguística | Lançamento

Este é o primeiro volume de um conjunto de dois livros em que nos propusemos a seguinte tarefa: apresentar um panorama atual do campo disciplinar conhecido sob a denominação de “a linguística”. O primeiro volume, que o leitor tem em mãos, é intitulado A linguística hoje: múltiplos domínios; o segundo volume intitula-se A linguística hoje: historicidade e generalidade. Apesar da aparente simplicidade de um objetivo assim formulado, muitas são as dificuldades a serem superadas para efetivá-lo.

Várias linguísticas,uma epistemologia da linguística | Lançamento

A primeira e mais evidente diz respeito à heterogeneidade da linguística hoje. Quantas teorias existem? Quantos métodos? Quantas escolas de pensamento? Quantos autores? Quantas interfaces disciplinares são possíveis? E a principal pergunta: há algo que permite unificar a linguística de forma que o uso do artigo definido “a” assinale tratar-se, efetivamente, de uma expressão referencial definida? Um epistemólogo desavisado poderia, apressadamente, responder: sim, o que unifica o campo é seu “objeto” e sua configuração “científica”. Ora, sabemos bem, também não há unanimidade em torno do que pode ser considerado “o objeto” da linguística, nem mesmo em torno de sua configuração científica. No segundo volume de nossos Conceitos básicos de linguística (Battisti, Othero e Flores, 2022), no capítulo intitulado “Linguística”, nos esforçamos para mostrar os problemas que surgem quando encontramos respostas simplistas sobre o tema e, inspirados em Ferdinand de Saussure, em especial na noção de “ponto de vista” apresentada no Curso de linguística geral (CLG), defendemos a existência de linguísticas, no plural, com seus respectivos objetos, também no plural. Vale reiterar o que dissemos naquele momento:

nada impede que se continue usando a expressão singular “a linguística” para referir, em seu conjunto, o campo de estudos que reúne diferentes abordagens de diferentes objetos, constituídos a partir da consideração da linguagem humana. O importante é ter-se clareza de que a designação singular não pode encobrir a multiplicidade constitutiva do campo. Ou seja, cabe resguardar o “direito à existência” dos vários estudos linguísticos existentes no mundo, pois é tão legítimo o ponto de vista de estudo criado por Saussure, no início do século XX, quanto aquele criado por Chomsky, na metade desse mesmo século, apenas para citar dois dos grandes expoentes do nosso tempo. Cada um mobiliza uma perspectiva própria de entendimento de linguística, de método para desenvolvê-la e de objeto a ser abordado (Battisti, Othero e Flores, 2022: 137).

Evidentemente, temos consciência de que a reiteração desse posicionamento teórico não resolve a questão que nos move aqui. No entanto, ele permite traçar um enquadramento, qual seja: o reconhecimento da diversidade de um campo não impede que busquemos falar dele, à moda foucaultiana, como um domínio em que se reconhece a estrutura de uma área e a configuração de saberes, ou seja, um “campo epistemológico”: “a epistémê onde os conhecimentos […] enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade” (Foucault, 1995: 11). Essa história – uma “arqueologia”, nas palavras de Foucault – dá “lugar às formas diversas do conhecimento empírico” (Foucault, 1995: 12). Isto é, o campo epistemológico da linguística, não obstante a heterogeneidade teórica e metodológica que o caracteriza, é o que permite que se reconheçam as condições e as configurações das possibilidades que organizaram (e organizam ainda hoje) um saber que se sobrepõe e que se quer válido em relação a outros saberes. Enfim, esse campo epistemológico é o que chamamos aqui de “a linguística”.

A segunda dificuldade que se nos apresentou decorre exatamente do que dissemos acima: admitida a heterogeneidade do campo, como abordá-la? Que ponto de vista adotar? Que princípios norteariam as escolhas?

Tais indagações exigiriam, cada uma, detida reflexão epistemológica. Observemos – apenas a título de exemplo, sem nenhuma pretensão de exaustividade ou de precisão de terminologia técnica – algumas especificidades que uma epistemologia da linguística deveria levar em conta: há paradigmas (historicismo, estruturalismo, relativismo, gerativismo, funcionalismo etc.); há escolas (gramática comparada, neogramáticos, glossemática, distribucionalista, de Praga, de Genebra etc.); há teorias (teoria das ondas, teoria das mudanças fonéticas, teoria do valor, teoria de princípios e parâmetros, teoria da variação etc.); há níveis de análise (fonologia, morfologia, léxico, sintaxe etc.); há fenômenos (aquisição da linguagem, tradução, mudança linguística etc.); há interfaces (sociolinguística, psicolinguística, etnolinguística etc.).

A partir dessa realidade, consideremos, ainda a título de exemplo meramente ilustrativo, um estudo que vise abordar a aquisição da linguagem. É possível encontrarmos uma investigação da aquisição da fonologia, de uma perspectiva gerativa, no quadro da teoria de princípios e parâmetros3, por exemplo. Mas também podemos encontrar um estudo que vise abordar a aquisição da linguagem de um ponto de vista da teoria do valor de Ferdinand de Saussure, com ênfase em aspectos do léxico4. Ora, o que percebemos nesses dois exemplos? Cruzam-se paradigmas (gerativismo, em um caso; estruturalismo, em outro); teorias (princípios e parâmetros, em um caso; teoria do valor, em outro); níveis da análise linguística (fonologia, em um caso; léxico, em outro); e tudo para
estudar o fenômeno da passagem da criança de infans a falante, a dita aquisição
da linguagem.

Exemplos desse tipo podem ser multiplicados. O que todos evidenciarão é que não existe uma única maneira de fazer linguística, nem mesmo uma única linguística. Tem razão Benveniste, portanto, quando faz uma afirmação da qual retiramos, inclusive, parte do título deste capítulo: “Há várias linguísticas, há várias maneiras de praticá-las” (Benveniste, 1989: 39, grifo nosso).

E como essa realidade está presente nestes livros? Os livros foram concebidos a partir de um posicionamento ético-político sobre a linguística e, também, a partir de uma concepção epistemológica da área; ambos, esperamos, se evidenciam já desde o sumário das obras até a organização interna dos capítulos, que, como se verá, é similar para todos os textos.

Da perspectiva ético-política, quisemos fazer valer a máxima de Roman Jakobson (1974: 34), para quem “a linguística interessa-se pela linguagem em todos os seus aspectos”. Ora, se Jakobson está certo – e acreditamos que sim –, têm direito à existência no interior da linguística todos os estudos que, de alguma forma, abordam a linguagem humana, reivindicando para si o estatuto de “uma” linguística. Certo está que seria impossível reunir numa obra introdutória e de dimensões definidas tudo o que existe hoje em dia no interior da linguística. Mas
nos esforçamos para se fazer representar todos os grandes vieses de investigação: o social, o biológico, o formal, o cultural, o tecnológico, o aplicado etc. Da perspectiva epistemológica, mais uma vez, é Benveniste quem dá a direção. Segundo ele, “a epistemologia é a teoria do conhecimento. Como é adquirido este conhecimento, isto não está dito por antecipação. Há muitas possibilidades de epistemologia. A linguística é uma epistemologia, pode-se considerá-la como tal” (Benveniste, 1989: 38). Ao que acrescenta: “a epistemologia, […], ela se constrói e reconstrói continuamente a partir da ciência, tal como ela se faz” (Benveniste, 1989: 39, grifo nosso).

Enfim, grosso modo, ao levar em conta o que diz Benveniste, decidimos pensar a própria linguística como uma epistemologia. Admitido esse encaminhamento, para torná-lo consistente, seria necessário estabelecer as condições de existência da linguística como forma de conhecimento, ou seja, seria necessário mostrar como ela se faz como ciência. É a isso que procedemos no item seguinte, no qual desenvolvemos a ideia da “linguística como uma epistemologia de si própria”, o que sintetiza a proposta que temos para compreender “a” linguística hoje.

Valdir do Nascimento Flores é professor titular de graduação e pós-graduação de Língua Portuguesa da UFRGS. É coorganizador dos livros Dicionário de Linguística da Enunciação, Saussure e Saussure e a Escola de Genebra e A Linguística hoje: Múltiplos domínios, e coautor de Enunciação e discurso, Semântica, semânticas: uma introdução, Introdução à linguística da enunciação, Enunciação e gramática, Conceitos básicos de linguística: sistemas conceituais, Conceitos básicos de linguística: noções gerais, e autor de A linguística geral de Ferdinand de Saussure.

Gabriel de Ávila Othero é professor de Linguística de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É autor do livro Teoria X-barra, coautor de Conceitos básicos de linguística: sistemas conceituais e Conceitos básicos de linguística: noções gerais e Para conhecer sintaxe, além de coorganizador de Sintaxe, sintaxes: uma introdução, Chomsky: a reinvenção da linguística, Saussure e a Escola de Genebra e A Linguística hoje: Múltiplos domínios.

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