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O sofrimento docente | Lançamento

O sofrimento docente dá a pensar. Mais do que abrir as conclusões a que chega este livro nas “Considerações finais”, a frase de Ricoeur, apropriada por Caroline Fanizzi, marca todo o percurso de sua obra. Que o exercício do ofício docente, além de eventuais alegrias e realização, traz também sofrimentos e angústia, sabemos. Esse sofrimento se expressa nas queixas cotidianas, nas doenças que acometem os professores, no afastamento do trabalho e, ao limite, no abandono da profissão. Mas há problemas cuja excessiva visibilidade parece, paradoxalmente, nos impedir de enxergá-los; cuja recorrente tematização nos afasta, ao invés de nos aproximar, de sua compreensão. Esse paradoxo parece descrever bem a trajetória desse campo de pesquisas que emerge ao longo do século XX e se solidifica a partir da década de 1980. A sensação que temos é de que quanto mais lemos ou ouvimos sobre o tema, mais reiteramos o que já sabíamos: os professores ganham pouco, têm péssimas condições de trabalho, padecem de um crescente desprestígio social e, por essas razões, sofrem. É no diálogo crítico com essa imagem, já cristalizada em nossas mentes, que a presente obra marca seu lugar inovador e sua potência elucidativa.

O sofrimento docente | Lançamento
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Não que esses fatores e condições – velhos conhecidos nossos – devam ser desprezados. Seu peso é devidamente reconhecido pela autora. Mas sua excessiva visibilidade parece encobrir um outro aspecto frequentemente negligenciado que sua obra traz à tona: a precariedade simbólica, e não apenas material, da imagem e do lugar social de professores e professoras. É sobre essa precariedade – como categoria simbólica e não apenas econômica – que o trabalho de Caroline se debruça ao analisar as figuras do sofrimento na relação que docentes estabelecem com o mundo, consigo e com os outros. Um sofrimento que decorre, dentre outros fatores, da crescente tentativa de decretar a superfluidade da figura docente, ou seja, sua descartabilidade como um alguém singular capaz de imprimir uma marca pessoal em suas escolhas, seus procedimentos, em suma, em seu modo próprio de exercer a função docente. Trata-se, pois, de um apagamento do lugar distintivo destinado ao professor no tecido simbólico social ou, para recorrer ao belo neologismo utilizado neste livro, da crescente ninguém-dade a que têm sido submetidos professores e professoras.

Não estamos em face de um fenômeno propriamente inaudito, como bem mostra a autora, ao comentar uma obra escrita em 1928: O calvário de uma professora. A escolha de Dora Lice por essa metáfora para figurar como título de sua narrativa é eloquente. Na cultura cristã, a palavra calvário evoca mais do que a montanha ao redor de Jerusalém na qual se crucificavam pessoas, dentre elas, Jesus de Nazaré. Ela encerra paradoxos e símbolos que nos dão a pensar. A crucificação era mais do que uma forma cruel de levar um condenado à morte. Os corpos crucificados ficavam expostos, sem sepultura e, portanto, destinados a serem devorados por animais e desaparecerem sem deixar vestígios de sua passagem pelo mundo. Decretava-se, assim, a superfluidade da morte e a insignificância de uma vida. Mas, não obstante ser essa a razão do ato, a crucificação permaneceu na cultura cristã como o símbolo de um padecimento que não pode ser explicado nem esquecido, emprestando ao sofrimento uma memória e uma dignidade que não podem ser apagadas.
Sofrer é também resistir, nos lembra Caroline, uma vez mais evocando Ricoeur. Dora Lice narra seu sofrimento como docente e, ao assim fazer, lhe empresta sentido. E é esse mesmo movimento que empreende Caroline Fanizzi em sua obra quando, por exemplo, destaca que o sofrimento é também signo de humanidade, testemunho daqueles que lutam para não se conformar a uma ordem submetida à razão instrumental que, a partir da retórica da eficácia dos meios técnicos, procura despojar os sujeitos de sua capacidade de reflexão ética e de ação política.

Não se trata, portanto, de oferecer rotas de fuga para o sofrimento, mas de compreendê-lo em sua gênese, suas manifestações e, sobretudo, em seus sentidos. Em uma bela passagem de sua Genealogia da moral, Nietzsche afirma que o homem, o mais bravo e mais habituado ao sofrimento dentre os animais, não nega em si o sofrer, ele o procura mesmo, pressuposto que lhe indiquem um sentido para isso, um para-quê do sofrimento. A ausência de sentido do sofrer, não o sofrer, é a maldição estendida sobre a humanidade. Como bem nos alerta Ricoeur, em um texto longamente explorado nesta obra, não é o caso de cairmos na armadilha do moralismo e buscar um sentido edificante para o sofrer, transformando-o em sacrifício e martírio com ares meritórios. Trata-se, antes, de nele reconhecer uma experiência humana, um fruto inevitável das contingências a que estamos submetidos em função de nossa trágica condição humana.

Mas é preciso reconhecer também que o sofrimento tem a potencialidade de nos interpelar. Uma interpelação que busca menos a causa do que o sentido, tanto quando dele padecemos como quando a ele nos expomos por meio da escuta das queixas de quem sofre. A queixa de quem sofre toma, assim, a forma de um apelo. Um apelo ao outro por parte de quem clama por ser ouvido e compreendido.

E, para além de todos os méritos acadêmicos, essa é a característica mais marcante deste livro: sua capacidade de se abrir ao sofrimento docente, de escutá-lo não como quem quer classificá-lo em um catálogo nosológico, mas como alguém que reconhece um semelhante em sofrimento. Nesse sentido, a obra de Caroline Fanizzi representa a materialização da convicção do filósofo tcheco Jan Patočka, para quem somente a arriscada e mesmo insensata solidariedade dos enfraquecidos poderia diminuir o sofrimento do viver humano.

José Sérgio Fonseca de Carvalho
Universidade de São Paulo


Caroline Fanizzi é doutora em Educação, na área de Filosofia, pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Sciences de lÉducation pela Université Paris 8. Mestre em Educação, na área de Psicologia, pela Faculdade de Educação da USP e pedagoga pela mesma instituição. Atuou como professora na Universidade Federal de Santa Catarina e também na educação básica na cidade de São Paulo. É membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Educação e o Pensamento Contemporâneo (GEEPC-FEUSP).

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