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Era do jogo | Rubens Marchioni

O ônibus da excursão para uma cidade praiana sairia em aproximadamente uma hora. Driblando o cansaço de um dia intenso como médica geriatra num hospital movimentado e seguindo sem escala para um banho relaxante, Stella já havia embarcado, levando malas e malas, com a leve impressão de que havia malas demais, como nesta frase, pesada por tantas malas que apareceram de repente. É do jogo.

Alguns de seus colegas de empresa – a gerente de recursos humanos, o advogado e a diretora de marketing, com os respectivos companheiros – chegavam aos poucos, mas sem perder a hora. Outros já estavam prontos para a partida. Dentro do ônibus, como se fosse uma reunião de rotina sem metas nem relatórios, o movimento e o vozerio só faziam aumentar. Também era do jogo.

O céu foi rasgado por um relâmpago que iluminou a pele clara e fina de Stella. Ele anunciava, cheio de atitude, que as coisas poderiam se complicar em pouco tempo, chovendo em um dia, como de costume o que era previsto para o mês inteiro.

Cada um tratou de verificar se havia mesmo trazido o guarda-chuva e a capa impermeável. Mentalmente, também se certificaram de que o agasalho estava na mala. Em tempos de desarranjo climático, tudo era possível de acontecer – inclusive não acontecer nada. Isso era apenas o novo normal. Se na sexta-feira fizesse calor, o sábado seria de inverno, para que o domingo pudesse ostentar toda a força do Sol e deixar tudo arrumado para o frio da “segundona”, e assim ad aeternum, dando aviso prévio aos meteorologistas.

Era do jogo | Rubens Marchioni

O motorista arregaçou as mangas da camisa – era o ritual de abertura da longa viagem, como um sacerdote que se paramenta para o início da celebração. Entrou no ônibus e sentou calmamente. Colocou o cinto de segurança. Com a mesma gravidade de um piloto preparando-se para uma viagem internacional, observou detalhes impensáveis do painel. Tudo parecia estar em ordem, desde que o aguaceiro anunciado não virasse tudo de cabeça para baixo. Parte da estrada não era das melhores, todos sabiam. Preocupante.

Getúlio era esperado, mas não chegava. Era esperado, mas nem sinal. Batucando os dedos em qualquer superfície e comendo besteiras para aplacar o estado de nervos, Stella tentou entrar em contato com ele. Ligou e nada. Mandou mensagem e nada. Esperou, inventando uma paciência inédita para alguém marcada pela ansiedade. E nada.

“Oi, querida, todo mundo tá aí?”

“Sim, só falta você. Já viu o toró que vai cair daqui a pouco?”

“Vi, claro que vi. Mas eu chego antes da chuva começar. Vê se não fica nostálgica por causa do céu escuro. Tchau.”

Tensa além da conta, Stella ainda suportaria a espera de mais algum tempo pela chegada do marido, incumbido desde cedo de tomar algumas providências práticas antes da viagem. Felizmente, o ponto fraco de Stella era compensado pela insistente resiliência de sempre.

Ainda em casa, Getúlio voltou imediatamente a procurar por uma guirlanda que Stella colocava na porta do apartamento antes mesmo do início da temporada de preparativos para o Natal. Ele deveria encontrar também uma peruca, outro item que seria usado por ela, a Rainha do Natal Fora de Época, numa festa a fantasia agendada para o dia seguinte no clube da cidade. Uma micareta natalina?

Em princípio, a peruca estaria no guarda roupa, se ninguém tivesse feito o favor de tirá-la de lá. Mas certamente alguém fez isso. “Espero que antes de se estressar comigo, a Stella se coloque no meu lugar” – Getúlio pensou, inseguro.

Na agitação causada pelos nervos, e transpirando como ninguém, ele foi até a área de serviço. No varal, um lençol branco, feito de algodão, lhe serviu de toalha para enxugar o suor. As marcas ficaram por lá, mas isso, naquele momento, era um detalhe, uma coisa qualquer, dessas que não devem impedir alguém dedicado à missão de encontrar uma peruca e uma guirlanda para Stella.

Getúlio teve a ideia de abrir o box da cama do casal. Lá dentro havia uma caixa, feita de MDF. Mas no meio do caminho havia uma fechadura, e isso obstruía a passagem de Getúlio e a chegada ao interior da caixa. Ele foi até a cozinha, pegou uma faca e pensou “Quem não tem cão, caça com cachorro. Tenho de abrir a maldita caixa. A peruca só pode estar lá”.

Abrir a maldita caixa poderia resolver o problema. A peruca poderia estar lá dentro, sabe-se Deus por que, mas tudo é possível nesse mundo também de meu Deus.

Abriu e veio a surpresa: a peruca estava lá, mas faltava-lhe uma parte do cabelo. Para Getúlio, aí estava um mistério a ser desvendado. Afinal, quem e por que diabos guardaria – ou esconderia – uma peruca com sinais visíveis de ter participado de uma luta corporal?

Tudo bem, o mistério poderia ser resolvido depois, certamente por Stella. Ele apenas colocou tudo numa caixa.

Como frequentemente se mantinha meio distante, com um ar de chateado e retraído, Getúlio pegou um livro de contos de Rubem Fonseca, o cachimbo e reforçou o compromisso interno de não entrar na água, porque o mar o apavorava. O cabelo cor de ébano estava sempre bem penteado, para combinar com o corpo baixo e atender à necessidade extrema do sentido de ordem que para ele devia existir em todas as coisas.

No carro que pediu por aplicativo, Getúlio praticamente ordenou ao motorista que enfiasse o pé no acelerador –, o caso pedia urgência urgentíssima.

O ônibus que transportava um grupo barulhento, incluindo-se aí uma mulher silenciosa, já havia andado cerca de 140 metros. O motorista o alcançou.

– Oi, meu amor, você chegou! A guirlanda e a peruca estão aí?

– Sim, estão aqui, mas a peruca deve ter tido uma boa briga, daquela de arrancar os cabelos.

– Por que “uma boa briga”? Como assim?

– Pois é, está faltando uma parte do cabelo. Droga, esqueci meus óculos de sol! Quando estava saindo, um cliente ligou para falar de um seguro de vida que lhe ofereci um dia desses.

Stella só não queria justificar o motivo do acidente com a peruca e por que ela foi parar naquela caixa tão bem protegida por uma fechadura. Disse apenas que tudo bem, ela improvisaria alguma coisa. Quem não tem cão, improvisa com qualquer outro animal. Desde que não se falasse mais nisso – a língua de Stella se escondia como se estivesse num claustro para evitar a produção de provas contra si mesma. Também era do jogo.

A viagem começou. Mas a chuva muito forte também começou. E a viagem foi interrompida até segunda ordem, respeitando a força do temporal. Houve tempo de sobra para conversas sobre assuntos como futebol, política, praia, viagens, a transferência de Roberta e a demissão de Juliano, a possível fusão da empresa comprada recentemente, dentre outros.

Exceto ficar parado na estrada, esperando por uma trégua vinda dos céus, naqueles tempos isso também era do jogo.
Demasiadamente do jogo.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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