De algum tempo a esta parte a palavra “narrativa” entrou na moda. A impressão que fica é a de que não existem mais fatos, apenas narrativas, ou seja versões, todas igualmente válidas. As pessoas sempre nos perguntam se isto faz sentido para nós, historiadores.
A verdade é que os próprios historiadores, em muitas ocasiões, resolvem recontar o acontecido. Então, como é que fica? Afinal, se uma coisa aconteceu, já faz algum tempo, e se já foi devidamente registrada e “contada”, qual o sentido de ser retomada por uma nova narrativa?
O historiador deve explicar que vários fatores nos permitem e até determinam uma nova visão. Pode ocorrer que novos registros sobre os acontecimentos foram encontrados, registros escritos ou mesmo arqueológicos, por exemplo. Se novas escavações comprovam a existência de uma civilização em uma região até há pouco inexplorada, temos que recontar a história da região. Se um novo documento esclarece a atuação de um papa com relação ao nazismo, a história precisa ser recontada.
Além disso, é importante ressaltar que História não é simplesmente aquilo que aconteceu, mas a maneira pela qual nós nos apossamos, incorporamos e registramos o acontecido. Esse registro varia também em função de nossas preocupações atuais. Por exemplo, o processo de empoderamento das mulheres faz com que passemos a olhar o acontecido também sob uma ótica feminista e isto muda nossa perspectiva sobre o mesmo fato, antes narrado sem considerar essa ótica.
É importante notar que não estamos falando de mudar o passado a partir de nossa vontade atual. O nazismo, por exemplo, não teve vergonha alguma de inventar uma inexistente raça ariana para justificar sua política racista. Esse olhar presentista é uma deturpação da História, pois implica em reinventá-la, o que é puro exercício de ficção. Já ter uma perspectiva atual, ser perspectivista, é outra coisa.
Há questões na História francamente favoráveis a um olhar mitificado. Guerras, por exemplo. Não por acaso costuma-se dizer que a primeira vítima das guerras é a verdade. Às vezes cria-se um mito assim que o fato bélico ocorreu. Às vezes faz-se isso depois, por diversos motivos. A União Soviética, que durante alguns anos, foi aliada das potências ocidentais contra a Alemanha e o Japão, logo se tornou a grande inimiga. Nas narrativas ocidentais a enorme importância dos países comunistas na derrota dos nazistas acabou sendo flagrantemente subestimada. Mitos servem para isso.
Talvez melhor do que teorizar, seja exemplificar. Um livro recentemente publicado na França (e agora traduzido no Brasil) mostra como os mitos de guerra surgem e são usados. Podemos aprender algumas coisas com essa obra chamada, não por acaso, Os mitos da Segunda Guerra Mundial.
O livro ensina muito. É uma excelente aula sobre temas da guerra que remodelou o mundo, a partir de informações fidedignas e documentos devidamente checados. Também é uma bela aula sobre os chamados “usos da História” (como nações e grupos tentam moldar a narrativa histórica de acordo com seus interesses) e o papel do historiador (como alguém que busca desconstruir mitos e tem um duplo compromisso, com o fato/o acontecido e com as questões do tempo presente). Utiliza documentos variados, como jornais, revistas, sites, filmes, relatórios militares, diários, memórias, memorandos secretos, depoimentos, julgamentos de criminosos de guerra, material diplomático, propagandas, estatísticas, dados técnicos a respeito de armas, táticas e estratégias.
Os 14 capítulos desvelam mitos. Mais do que isso, mostram como, quando eles foram construídos e por que se perpetuaram (quais os interesses que fazem com que se mantenham vivos na memória coletiva até hoje). Assim, ficamos sabendo que a ideia de que Hitler se antecipou a um ataque de Stalin ao invadir a União Soviética é apenas uma tese revisionista alimentada bem depois do Julgamento de Nuremberg. Pearl Harbor, uma vitória japonesa é uma falácia perpetuada tanto pelos americanos (por conta da percepção dos contemporâneos surpreendidos pelo ataque) quanto pelos japoneses (para justificar a continuidade de uma luta que desde cedo seus governantes sabiam perdida). Esses são apenas alguns dos exemplos da vasta gama de assuntos tratada no livro, que vão de bombardeios aéreos ao papel das mulheres, dos camicases aos carismáticos discursos de Churchill.
Seria bom que políticos, cientistas sociais e jornalistas, em vez de continuar dando versões e narrativas desencontradas e inconsequentes, lessem bons livros que os fizessem entender melhor o sentido da releitura da História.
Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.
Carla Bassanezi Pinsky: historiadora e editora de livros. Doutora em Ciências Sociais (área de Família e Gênero) pela Unicamp, mestre em História Social pela USP, autora de Mulheres dos Anos Dourados (2014), Pássaros da Liberdade (2000); coautora de História das mulheres no Brasil (1997), Nova História das Mulheres no Brasil (2012), História na sala de aula (2003), Novos temas nas aulas de História (2009), História da cidadania (2003); organizadora de Fontes históricas (2008) e O historiador e suas fontes (2009) entre outros livros – todos esses foram publicados pela Editora Contexto.