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Uma família como muitas outras | Jaime Pinsky

Há 90 anos, no dia 28 de março de 1927, aportava no Rio de Janeiro o navio Mosella, de bandeira francesa, pertencente à Companhia Sud Atlantique. Além de 141 tripulantes, transportava mercadoria e passageiros e, entre estes, na terceira classe, o meu avô, a avó e cinco de seus 6 filhos. Partindo de Bordeaux o navio cumpriu sua rota habitual, desde que foi colocado em serviço 5 ou 6 anos antes: Vigo, na Espanha, Lisboa, Dakar, Recife, Salvador e então Rio de Janeiro. O jornal pernambucano A Província, de 9 de fevereiro de 1927 comunicava, em anúncio da empresa marítima, que o vapor Mosella estava sendo aguardado para o dia 20 de março, zarpando “após a necessária demora” em direção à Bahia, Rio de Janeiro, Santos, Montevidéu e Buenos Aires. Faz sentido, portanto, a família ter passado pela imigração no dia 28 de março de 1927. Há 90 anos, portanto.

O documento que está na minha frente, oriundo da “Directoria Geral do Serviço de Povoamento do Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio” lista um pai, Mowsza Pinski, uma mãe, Pesza Pinski e cinco filhos, com idades entre 11 e 23 anos de idade. Entre eles estava um tal de Abram Pinski, então com 15 anos, meu pai. Seus irmãos eram Chana, Szejna, Ioko e Sara, a caçula.

Depois de sete séculos vivendo na Polônia e adjacências (em regiões que hoje fazem parte da Ucrânia, Belarus, Lituânia e da Rússia) os judeus foram perdendo sua condição de existência e passaram a sofrer perseguições que culminariam com o holocausto promovido pelos nazistas. Quem saiu na época do meu avô, saiu-se bem. Embora com muita tristeza, ele tinha conseguido vender sua propriedade, inclusive um moinho de trigo, responsável pela batata com manteiga de cada dia e do arenque com creme de leite azedo das sextas à noite.

Os judeus davam os nomes em ídiche, língua que se originou de um dialeto alemão que eles haviam levado da Alemanha para a Polônia no século XIII e enriquecido com palavras eruditas e religiosas do hebraico e palavras cotidianas e chulas do polonês. O Mowsza do meu avô não é senão uma tradução de Moiche (Moises, em português, às vezes Maurício), assim como Pesza é Pecha (geralmente Paulina) e o Szejna é apenas o Sheina (Bela, literal e merecidamente); Ioko é Itzhak (Isaac), Chana é Chane (Ana). Sara e Abram não mudam, a não ser pelo sotaque e pelo nosso ão criado para que nenhum estrangeiro consiga pronunciar.

Mas, como dizia, esse povo todo desceu do navio vindo de Bordeaux em 1927, e foi para uma quarentena obrigatória na então Ilha das Flores. Quantos dias ficaram nessa ilha que já não é mais ilha (um aterro incorporou-a ao continente) é um mistério, já que os livros de registro de 1927 desapareceram da hospedaria, como me informou o historiador Luiz Reznik. Ao final de prováveis 4 ou 5 dias devem ter tomado o trem para São Paulo e daí viajaram até o norte do Rio Grande do Sul, região de Passo Fundo, em terras que haviam sido adquiridas pelo Barão Hirch em 1911 para acolher judeus perseguidos na Europa Oriental. A região não era paradisíaca, nem ao menos pacífica. Em 1923 foi cena de sangrenta batalha entre chimangos e maragatos, no ano seguinte foi ocupada pela Coluna Prestes. Mas a família nada tinha a ver com isso. Lá se instalou e lá começou a plantar. O que? Amendoim e alfafa, entre outras coisas. Pelo menos é o que assegura um documento que ostento com orgulho no meu escritório na Editora Contexto, um diploma datado de 1931 (ou seja, quatro anos após a chegada daquele grupo a terras tupiniquins), assinado pelo interventor Flores da Cunha. O texto garante que o colono M. Pinsky (meu avô, agora já ostentando o y no sobrenome) ganhou o terceiro lugar em amendoim e menção honrosa em alfafa na “Grande Exposição Agrícola, Pastoral e Industrial” realizada no Rio Grande do Sul. Sim, o danado desse Moises/Maurício/Moiche colocou a filharada para trabalhar com afinco e colaborou com o aprimoramento da agricultura brasileira, mesmo não falando um português perfeito e desconhecendo muitas práticas culturais da região de Passo Fundo.

Mas a saga dos Pinsky continua. Os cinco filhos que para cá chegaram tiveram 13 netos, que, por sua vez, fizeram a sua parte para garantir a continuação da família. Quase todos continuam no Brasil, nas mais diferentes atividades.

Pacíficos e produtivos, como o patriarca. E como tantos imigrantes que para cá vieram.


Por Jaime Pinsky, historiador e editor, doutor e livre docente da USP, professor titular da Unicamp.