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Trinta anos depois

O tempo histórico sofreu uma acelerada nestes últimos 30 anos. No Brasil e no mundo as mudanças são profundas e estão à vista de todos.

Há 30 anos as pessoas não se correspondiam por e-mail, WhatsApp ou Facebook. Elas simplesmente conversavam sem a intermediação de aparelhos eletrônicos. Telefones (fixos, não havia celulares) eram um luxo, jornais (numerosos) tinham tiragens altíssimas. Liam-se livros inteiros na universidade, e se ostentavam capas como se ostentam iPhones hoje em dia. Livros não eram diagramados no computador comum, como agora, mas por sistemas complexos que tinham a função de substituir a jurássica máquina chamada linotipo (aquela que usava chumbo derretido para gravar as linhas de letras).

Há 30 anos as pessoas se visitavam de corpo presente, não virtualmente e o interurbano era raro e caro, já que não tínhamos ainda o Skype. A sensação de liberdade era recente, o Brasil estava saindo de uma ditadura que escorraçou da vida pública gente que talvez faça falta até hoje na política brasileira. Estávamos nos esforçando para aprender a viver em uma democracia. Estávamos nos esforçando também para superar preconceitos seculares, intolerâncias das quais não temos por que nos orgulhar. A imprensa e os intelectuais, agora livres, percebiam que a gritante desigualdade social brasileira havia engendrado uma elite, com frequência, arrogante e um povo que teve que aprender a ser dissimulado para sobreviver. Isso terá mudado? Trinta anos atrás a escola pública não era universal, embora fosse melhor do que hoje em dia (talvez, exatamente, por não ser universal).

Trinta anos atrás éramos 140 milhões e nesse tempo o país ganhou mais 60 milhões de habitantes. As cidades grandes ficaram imensas, as médias ficaram grandes. Mas não foi um crescimento orgânico, antes um inchaço, um crescimento de periferia sem esgoto, sem hospitais, sem atenção dos poderes públicos. O resultado foi o aumento da violência que assusta parte da classe média e transformou o Brasil em um exportador de mão de obra. Pelo menos já não se cultiva mais o mito de que sempre fomos um povo avesso à violência…

Há 30 anos ainda éramos os bons no futebol (pelo menos assim nos víamos), apenas lamentávamos a derrota de 1950 para os uruguaios; nem sonhávamos com a hecatombe de 2014 diante dos alemães. A partir do futebol, de nossa ginga, de nossos supostos bom caráter, pacifismo e simpatia, tínhamos certeza de que no mundo todo os brasileiros eram amados. Éramos mesmo? Ainda somos?

Trinta anos atrás não se admitia variações na fala do português (que nem era conhecido ainda como português brasileiro), havia apenas o “certo” e o “errado”. A verdade da língua era definida por meia dúzia de gramáticos que não queriam saber como falavam milhões de pessoas no Nordeste, no interior de Minas e São Paulo, no Sul do país, em grande parte do território nacional.

Trinta anos atrás não se imaginava que empresários destacados e políticos importantes pudessem ser presos e constrangidos a revelar esquemas de propinas envolvendo relevantes figuras da República. Criar dificuldades para vender facilidades era prática rotineira. Beneficiar-se, por ser “amigo do rei”, era comum. Isso era nocivo para o país, colaborava com a reprodução da desigualdade, premiava desonestos, impedia a livre concorrência, encarecia artificialmente obras de infraestrutura e os sistemas públicos de educação e saúde. Isto estará mesmo mudando para melhor?

Sim, nosso país e o mundo eram bem diferentes. A economia e a sociedade eram diferentes, as mulheres e as famílias eram diferentes, a música e o jornalismo eram diferentes, a luta pela cidadania era diferente, diferentes eram até o esporte e a língua falada e escrita.

O Brasil melhorou, piorou, ficou na mesma? O que é que almejávamos, o que almejamos agora? Ainda acreditamos no futuro ou nos conformamos com o que somos? O que queríamos, o que conseguimos, o que conquistamos, do que desistimos?

O livro é um balanço destes últimos 30 anos, a partir de diferentes olhares e de diferentes perspectivas. O que aconteceu com nosso país enquanto a Editora Contexto surgia, lutava para se firmar, ocupava seu terreno passo a passo até se tornar uma importante referência na vida editorial e cultural do Brasil.

O livro foi escrito exclusivamente por autores da Contexto. Nem podia ser diferente, tal a qualidade de bons autores que temos (assinam livros de nossa editora mais de 1100 escritores, todos eles de alto nível, todos qualificados para falar sobre os temas de sua área). Difícil foi fazer uma seleção, mas aqui estão 17 craques, que reúnem clareza formal e densidade de conteúdo, profundo conhecimento do assunto e originalidade de abordagem. Como a Contexto é uma editora, não um partido político, entendemos como natural que alguns olhares sejam diferentes dos outros. Tomamos a diversidade como uma virtude. Ela permitirá ao leitor uma leitura mais rica.

O livro começa com um texto de José de Souza Martins, sociólogo da USP, que faz a proeza de analisar a evolução da sociedade brasileira nestes últimos 30 anos e coloca nossa Editora… no contexto. Em seguida, a educadora Magda Soares, da UFMG, mostra e discute o que aconteceu neste período na área de alfabetização e letramento, enquanto o historiador e educador Nelson Piletti, da USP, analisa a educação, e o economista Antonio Corrêa de Lacerda, da PUC-SP, discorre sobre as transformações econômicas pelas quais o Brasil tem passado. Já o jornalista e professor Carlos Eduardo Lins da Silva, do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional, da USP, estuda a saga dos jornais e revistas nestas três décadas e a também jornalista Arlete Salvador  fala sobre as novas mídias que surgiram no período.

O que aconteceu com a família brasileira é o tema da historiadora Ana Scott, do NEPO, Unicamp, enquanto que as mulheres são abordadas pela dupla das também historiadoras Carla Bassanezi Pinsky, doutora pela Unicamp, e Joana Maria Pedro, da UFSC. Os negros são o tema do professor e historiador José Rivair Macedo, da UFRGS, e a violência está sendo tratada pelo sociólogo Renato Sérgio de Lima, da FGV.

As transformações ocorridas em nossa língua foram abordadas pelos linguistas Dermeval da Hora, da UFPb e Thaïs Cristófaro Silva, da UFMG. No esporte, pelo jornalista e narrador Milton Leite, da GloboNews. A política externa brasileira nestes conturbados 30 anos foi analisada pelo embaixador Sergio Florencio, do Itamaraty, e o jornalista Milton Blay do Grupo Bandeirantes nos fala, diretamente de Paris, onde reside, como o Brasil é visto de fora.

Faltava alguém dizer como se estabelece uma relação entre autor e editora nestes tempos de mudanças rápidas. Para isso foi escalado o historiador Leandro Karnal, da Unicamp, que escreveu um texto intenso e pessoal.

A Editora Contexto tem uma história e muitas histórias. Ela surgiu em 1987, como resultado de um projeto que desenvolvi a partir de conversas com um grupo de professores da Unicamp e da USP. O objetivo era criar uma empresa que aliasse compromisso com o conhecimento e agilidade operacional. A ideia não era apenas sonhar, mas colocar os sonhos para funcionar. Parte dos colegas tinha fundado comigo a Editora da Unicamp, que eu havia dirigido por quatro anos. Em paralelo com minha carreira acadêmica eu tinha tido experiência como consultor, editor e coordenador de coleções em diversas editoras. Achava chegado o momento de tocar um projeto próprio visando à circulação do saber.

O entusiasmo dos colegas foi tanto que chegamos a cogitar abrir uma cooperativa editorial. Faltou, contudo, no dizer de um deles, “espírito empreendedor”, coragem para o risco. Todos se ofereciam para propor títulos, dar sugestões, avaliar originais, mas não entrar como sócios de uma empreitada de risco. Não desanimei. Nome eu já tinha: Contexto, em homenagem à revista de Ciências Sociais de mesmo nome, sucessora de Debate & Crítica, que, nos anos 1970, eu dirigira em companhia dos sociólogos Florestan Fernandes e José de Souza Martins, com o respaldo de um conselho editorial que tinha, entre outros, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso, Maria Conceição Tavares, Paul Singer e Antonio Candido. Faltava capital, mas isso foi contornado com a eliminação, ao máximo, dos custos fixos: a Editora foi montada em minha própria casa. A família, além de ajudar, teve que pagar o ônus do meu sonho: o depósito ficava na sala de jantar, a composição, na sala de visitas, a garagem foi transformada em recepção e secretaria, a revisão ficava numa salinha dos fundos e a direção, no escritório do andar de cima. Esposa e filhos se envolveram. Mirna coordenava a área de livros infantojuvenis, Daniel emitia notas e ajudava na logística.

Além da literatura infantojuvenil (área que abandonamos logo depois), começamos produzindo livros escritos por especialistas, nas áreas de História, Geografia, Língua Portuguesa e Linguística. Escolas e universidades adotavam nossos livros, quase sempre pequenos, feitos com conteúdo bem elaborado e preços competitivos. O resultado foi muito bom e permitiu que a Editora criasse uma base: diversas obras tiveram muitas edições e algumas acumularam tiragens de dezenas de milhares de exemplares. Uma boa parte dos títulos ainda se encontra no catálogo da Editora.

Logo que possível nos mudamos para a rua Acopiara, onde ficamos até janeiro de 2007, quando finalmente adquirimos nossa sede própria, na rua dr. José Elias, sempre na zona oeste de São Paulo. A trajetória foi trabalhosa, mas exitosa. No caminho a Contexto já havia experimentado até três títulos em livros didáticos de primeiro grau, com vendas que superaram um milhão de exemplares. Havia também tido alguns sucessos relâmpago. A Editora se consolidava. Os passos já poderiam ser bem maiores. O nome e a imagem da Contexto propiciaram as primeiras propostas de compra da empresa. Mas não era esse o meu plano. Muito pelo contrário.

O momento era bom, a Editora tinha distribuidores competentes, ótimos prestadores de serviços editoriais e dedicados coordenadores de coleção. Começava a ser muita coisa para um diretor solitário que, além de tudo, dedicava um dia por semana à CBL, participando da diretoria da entidade, de várias comissões, e da coordenação das atividades educacionais e culturais da Bienal do Livro de São Paulo. Para minha alegria dois de meus filhos, em diferentes momentos e circunstâncias, demonstraram interesse em participar da Editora. A entrada de Daniel como sócio (há mais de duas décadas) manteve a Editora na sua trajetória de crescimento sólido, num período de muita turbulência no mercado. Sua dedicação, seu espírito empreendedor e talento permitiram à Contexto criar novos modelos de negócio. Graças a seus esforços hoje dispomos de importante acervo digital. Mais que tudo, sua presença se manifesta no arcabouço organizacional da empresa, hoje muito bem-estruturada. Daniel, com formação em Administração na FGV e mestrado em Administração pela USP, dirige as áreas comercial e financeira.

Há pouco mais de dez anos juntou-se a nós minha caçula, Luciana. Com licenciatura em Jornalismo e História, ambos pela USP, além de mestrado em Comunicação na mesma universidade, Luciana é hoje responsável pela parte operacional da produção e da atividade editorial da Contexto. Sensível e bem preparada, abraçou a Editora com muita dedicação, somando seus esforços aos nossos. Ambos reforçaram o caráter profissional da empresa e cuidam do projeto, junto comigo, com afinco e harmonia.

É importante ressaltar que aqui, ao contrário do que ocorre até em algumas áreas governamentais, praticamos uma rígida separação entre o que é pessoa física e jurídica, delimitação clara de funções e tarefas e grande respeito entre os sócios.

Graças ao modelo que estabelecemos tem sido possível ousar um pouco mais, produzir excelentes livros-texto, obras destinadas a um público mais amplo, traduções e títulos de referência.

Crescemos muito em áreas como Linguística, Língua Portuguesa, Geografia e História. Nossos livros tornaram-se referência frequente de matérias jornalísticas, teses, pesquisas, concursos, vestibulares e até em pronunciamentos de juízes em tribunais. Nossa coleção Povos e Civilizações, iniciada com O mundo muçulmano (já traduzida para o inglês) chegou a dezesseis títulos, todos primorosamente editados, e se tornaram prendas desejadas por leitores de todo o país. Estamos abrindo uma nova área de romances históricos. Numerosos Jabutis, além de prêmios Casa Grande & Senzala, Clio e União Latina têm enfeitado nossas estantes. Mas não dormimos sobre os louros e continuamos criando e nos renovando, em todos os setores da empresa. A criação de um novo site moderno e mais funcional, participação assídua nas mídias sociais, presença em eventos no Brasil todo e, mais que tudo, o enriquecimento do nosso catálogo são mostras de nossa preocupação com a atualização permanente na forma para viabilizar o compromisso que assumimos desde a inauguração da Editora.

Reconheço, reconhecemos todos, uma ponta de orgulho ao ver nossa marca nas principais livrarias do país, em belos estandes nas feiras de livros e nas prateleiras de bibliotecas públicas e particulares. Um velho editor me dizia, há tempos, que não importava quantos livros se publica, mas sim o fato de que cada um deve se tornar um acontecimento cultural. É o que estamos empenhados em realizar.

As pessoas que trabalham na Contexto formam uma equipe leal e afinada. Não poderia deixar de prestar homenagem especial a todos eles, o que farei nomeando aqueles que estão há mais de 10 anos conosco, seja como funcionários fixos, seja como prestadores de serviço. Lourenço no estoque, Gustavo na produção, Lilian na revisão, Diego na comunicação, Lívia no comercial, Carla no editorial ajudam a dar o tom, que instrumentistas mais recentes logo captam. Todos têm grande parcela de responsabilidade pelo sucesso da editora. Editores, administradores, vendedores, estoquistas, assessores, produtores, diagramadores, motoristas, assim como ilustradores, capistas, tradutores, revisores, pareceristas garantem nosso padrão de excelência.

Contudo, os maiores responsáveis são autores e leitores, sem os quais o livro não existiria. A cada um de vocês uma fatia do nosso bolo de 30 anos.