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Terra estranha | Rubens Marchioni

Gaspar, um geógrafo de 60 anos e à época sem perspectiva em terras brasileiras, me conta que a fábrica em que trabalhava, no exterior, destruiu qualquer possibilidade de vida pessoal. Seus hábitos de descanso diário ficaram atrapalhados. Ora se levantava às 04h15, ora às 05h45, ora às 02h15. Por conta disso, as olheiras profundas em torno dos olhos cor de café e emoldurados por óculos pesados se tornaram como tatuagens, deixando o rosto vestido de sombra. Ao mesmo tempo, se era dia de folga, ninguém sabia que surpresas poderiam surgir – uma convocação de emergência nunca estava descartada. E isso violentava qualquer norma de bom senso. Mas devo dizer, já no primeiro parágrafo, que Gaspar investia suas habilidades artísticas na criação de uma esperança que ia além, porque praticava diariamente o verbo esperançar, na ação, como aprendeu com um educador.

Aqui e ali, falando como se escrevesse, Gaspar repetia a ideia: “É comum acontecer a um médico ter de sair no meio da madrugada para socorrer um paciente? Sim. Mas ele está na profissão que escolheu. E quando faz o seu trabalho, ele não está metido num confinamento prisional. O que faz toda a diferença, não é mesmo?”

Por conta dos motivos pelos quais ia para a cama, o sono de Gaspar era confuso, cheio de interrupções. Sem conseguir acionar o mecanismo de repouso, o cansaço permanecia intacto. O que significava que ele não descansava de maneira adequada já fazia alguns meses. Isso tinha um efeito cumulativo catastrófico. Ninguém sabia ao certo o que estaria por vir.

Ao contrário da crônica de Machado de Assis, em que o escritor tem o cuidado de perguntar ao amigo, o livreiro Garnier, por que não descansava algum tempo depois de tantos anos de luta sem trégua, ninguém o presenteava com igual forma de zelo. Engana-se quem pensa que Gaspar desejava se aposentar antes da hora e preencher seus dias com programas de TV, uma boa dose de tédio, nada disso. Ele queria apenas viver e descansar dignamente. Ter a oportunidade de pertencer a um grupo além das quatro paredes da sua casa.  

Às vezes ele ouvia dizer coisas como “Ótimo, você trabalha das 6h às 14h e depois tem todo o tempo pra fazer o que você quiser”. Mas isso era ilusório. Ilusão da melhor qualidade, aliás. Porque não era assim que as coisas aconteciam na prática. Afinal, o corpo humano está longe de ser um liquidificador, com a previsão calculada de um motor, ligado ou desligado com um simples toque. 

A partir das 14 horas, e somente nas raras vezes em que a empresa respeitava esse horário, Gaspar apenas começava a esperar pelo ônibus e depois fazer o trajeto para casa. Ele não residia a uma quadra do local onde “cumpria pena”. E isso era apenas o começo. Como se vê, tratava-se de um tempo que não contava a seu favor. A conta precisava ser refeita.

Depois de ter dormido muito mal, acordando quatro a cinco vezes por noite, em geral por causa de pesadelos, como dispor de energia para aproveitar o resto do tempo? Depois de ter se levantado às 4h da manhã e trabalhado em pé, no ritmo de uma esteira, tenso, nervoso, segurando as dores, não teria a menor condição física e psicológica de fazer qualquer outra coisa. Nem mesmo uma atividade leve e descomprometida, que fugia do seu alcance. Gaspar apenas conseguia rondar pela casa feito um zumbi. Na teoria tudo poderia ser possível. Mas na prática a teoria é outra.

Mergulhado nessa turbulência, enquanto folheava livros na biblioteca adotada como visita obrigatória sempre que podia, Gaspar foi consultado sobre a possibilidade de fazer a síntese de uma tese de doutorado para uma estudante brasileira. O trabalho era exigente, e o prazo bem curto. Tudo agravado pelo fuso horário, que dificultaria seus contatos com a cliente. Dispensou. O motivo era mais do que justificado: Gaspar não tinha a menor condição física e emocional de encarar um projeto como esse, cheio de minúcias e armadilhas. Então ele se perguntava de que lhe servia trabalhar “apenas” até as 14 horas se depois não serviria para mais nada.

Ainda sobre a ideia de tempo livre, poderíamos pensar que ele dispunha da noite para isso. Mas era preciso ter mais clareza a respeito. Acontece que ter tempo livre só faz sentido quando o corpo e a mente estão descansados para aproveitar cada minuto. É ter liberdade para fazer o que queremos e depois voltar ao trabalho, sem permanecermos no ócio, porque dinheiro não cai do céu.

Mas ainda havia outro engano: depois do dia vivido por Gaspar, o máximo que ele conseguia fazer era dormir – isso quando conseguia. Claro que a imagem de um homem dormindo quando há tanto a ser feito não obtém aprovação. A opinião pública não vê com bons olhos. No entanto, ainda que o seu gesto desagrade, ele era coagido a dormir, e fazia isso a serviço da empresa. Mas por vezes o seu corpo se recusava a atendê-la. Assim, só lhe restava o trabalho de administrar o conflito gerado por essa situação.

Ou seja, a empresa havia roubado a sua noite também. Apenas para citar um exemplo, às 20h30 do dia anterior, tentando escrever, começou a cochilar ainda sentado sobre os ferros da poltrona desconfortável do seu pequeno quarto, tamanho era o cansaço físico e o desgaste emocional. Com um livro nas mãos, celebrava a vitória escassa de ler até duas páginas a cada vez, nunca mais do que isso. Para Gaspar, um estudioso por natureza, ficar privado da leitura era como não dispor de ar suficiente para respirar.

Sua vida era assim. Trabalhar. Esforçar-se para descansar, sem grande proveito. Trabalhar. Esforçar-me para descansar. Trabalhar. Esforçar-se para descansar. Trabalhar de novo. Perder peso. Manter o controle rigoroso na hora de gastar o pouco que recebia pelo trabalho feito sem regularidade. Eu repetiria muitas vezes a mesma sequência de palavras e frases não fosse pelo fato de que tal prática se mostraria enfadonha.

Mas sempre era possível piorar: bastava que a sua filha o avisasse de que a empresa confirmou sua presença para o dia seguinte, num horário fora do combinado. Aí batia um desgosto muito forte. Seria o fim. Ou seria o início de um novo projeto de vida sendo gestado em silêncio. A rotina seguia em frente. E enquanto um olho de Gaspar ficava ocupado com alguma lágrima discreta, porque falta-nos a resistência que vem do aço, o outro mirava o horizonte, vasculhava a estrada, e a mente calculava os detalhes da nova trajetória, movida pela força da utopia que nos arranca da terra seca e sem vida.


Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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