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Sete vidas, milhões de vidas

A Segunda Guerra Mundial foi o evento que marcou o século XX, e ainda é, mais de 80 anos depois de iniciada, um ponto de referência histórico para praticamente qualquer acontecimento mundial. Foi a guerra que produziu mais mortos – pelo menos 80 milhões de pessoas – e a primeira em que morreram mais civis do que os combatentes diretos. Foi um conflito que atingiu a todos, tanto os que estavam nas áreas onde os combates eram travados, quanto quem se encontrava geograficamente distante dos campos de batalha e que, da guerra, só tinham vagas informações. Todos, combatentes ou não, seriam afetados de um modo ou de outro.

Foi o que pensou, na madrugada de 1º de setembro de 1939, Otto Schmidt, 22 anos, piloto da força aérea alemã, quando recebeu, junto com seus companheiros, uma ordem de missão de ataque a posições polonesas. Não havia dúvidas. “Pessoas vão morrer e nós fazemos parte dessa máquina de guerra.” Seu esquadrão de bombardeios decolou e, na altura da pequena cidade polonesa de Wielun, os aviões mergulharam e despejaram suas bombas. Schmidt recorda ter ficado horrorizado ao pensar que as pessoas abaixo deles ignoravam que a guerra tinha começado. “Daquele ponto em diante, elas podem ser mortas a qualquer momento, talvez pelas minhas bombas.”

Sete vidas, milhões de vidas

Como Schmidt intuía, os habitantes de Wielun e de outras cidades polonesas somente souberam que a guerra tinha começado para valer após o primeiro ataque. Nos dias seguintes, todos tentaram fazer o possível para sobreviver. Em Cracóvia, a mãe de Rajmund Roman Polanski passou a obrigar o filho, de 6 anos, a dormir de sapatos para estar preparado para correr, em caso de bombardeio, em direção a um porão velho que servia de abrigo. O posterior cessar-fogo, porém, não trouxe paz. Com Cracóvia ocupada pelos alemães, a família de Rajmund, judia, sentiu o horror do combate nazista, que não poupava civis e via nos “atributos raciais” da população das zonas ocupadas razões para exterminá-la. Os pais de Rajmund foram encaminhados a campos de concentração. Ele, sozinho, entre os 7 e os 12 anos de idade, viveu o período da guerra vagando pelo Gueto de Cracóvia e por cidades e campos da Polônia, mendigando dinheiro e abrigo, roubando comida e fugindo dos nazistas. Sua mãe morreu em Auschwitz e seu pai sobreviveu milagrosamente após passar dois anos nos campos de concentração de Mauthausen-Gusen, na Áustria. Em 1945, Polanski decidiu seguir a carreira no teatro e no cinema. Seu talento logo foi reconhecido e tornou-se, nas décadas seguintes, um famoso diretor de cinema. Ao comentar um de seus filmes, o premiado O pianista, Polanski revelou ter sido o “mais pessoal” que dirigiu, por evocar as lembranças das atrocidades sofridas por sua família e da luta pela sobrevivência nos tempos da guerra.

Ajudar aliados perseguidos foi o objetivo que moveu Andrée de Jongh, jovem enfermeira belga, ao organizar entre 1941 e 1942 uma rede de fuga de soldados e pilotos de aeronaves abatidas (inclusive alguns que não puderam ser evacuados em Dunquerque) que precisavam escapar da Bélgica ocupada pelos nazistas, a “Rede Cometa”. Esses combatentes eram levados, escondidos das mais diversas maneiras, até a Espanha, e de lá, encaminhados para a Grã-Bretanha. Dédée, codinome de De Jongh, só interrompeu suas atividades quando foi capturada pelos alemães, em 1943, ficando presa até o fim da guerra. Após o conflito, dedicou sua vida a tratar de leprosos em países africanos como Congo, Camarões, Etiópia e Senegal.

Junto às iniciativas individuais, também os governos tentavam proteger seus cidadãos. Temendo bombardeios nas principais cidades inglesas, o governo britânico evacuou crianças para o interior do país e para o exterior. Entre elas estava Martin Gilbert, que sequer havia completado 4 anos de idade quando foi enviado para o Canadá na companhia de centenas de outras crianças. A viagem para Toronto, em meio a um comboio de 50 navios, foi terrível. Submarinos alemães os atacaram e cinco embarcações foram afundadas. O navio em que o garoto se encontrava, porém, não foi atingido. Marcado profundamente por essa experiência, na vida adulta, Martin Gilbert se tornou um dos mais respeitados historiadores da Segunda Guerra Mundial e do extermínio dos judeus.

A mesma embarcação que transportou o menino Martin para o Canadá, no início da guerra, fez o caminho de volta com milhares de soldados canadenses para a Grã-Bretanha, para tomarem parte, tempos depois, da maior invasão anfíbia da história, o Desembarque na Normandia em junho de 1944, no famoso Dia D. Nesse dia e nos seguintes, os combates travados entre os Aliados (americanos, britânicos e canadenses) e as forças alemãs foram ferozes. Quando fizeram prisioneiros, os Aliados se surpreenderam com quatro soldados coreanos que vestiam uniforme do Exército alemão. Entre eles estava Yang Kyoungjong, recrutado à força, em 1938, pelo Exército Imperial do Japão, país ao qual a Coreia pertencia naquele momento. Levado a lutar pelo Japão, foi feito prisioneiro pelos soviéticos na fronteira da Manchúria chinesa com a da União Soviética na Batalha de Khalkhin Gol, em 1939. Depois de ser levado para um gulag, um “campo de trabalho” de prisioneiros políticos e comuns, acabou recrutado para o Exército Vermelho, em 1943. Combateu os alemães na Ucrânia, em Karkov, e mais uma vez, participando do lado vencido, foi feito prisioneiro do Terceiro Reich. Este, porém, à medida que as necessidades da guerra por mais soldados se avolumavam, relaxou as exigências de pureza racial de seus defensores. E lá foi Yang, vestindo uniforme alemão, para a região francesa do Cotentin, na Normandia, para defender em 1944 a “Muralha do Atlântico” contra uma invasão aliada. Lutando pela terceira vez pelo lado derrotado, novamente foi feito prisioneiro, dessa feita pelos americanos. A guerra tinha finalmente acabado para Yang. Libertado da prisão em 1947, estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde viveu em Evanston, Illinois, até sua morte, em 1992.

Continue lendo um trecho do nosso lançamento: Segunda Guerra Mundial


Francisco Cesar Ferraz é professor associado do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, e pesquisador do CNPq. Possui doutorado em História pela Universidade de São Paulo (USP) e mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).

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