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Stop line! | Rubens Marchioni

No modesto restaurante próximo à sua casa, entre um gole e outro de cerveja, Fiori me falou da sua experiência trabalhando no exterior. Durante um ano ele serviu numa fábrica de sanduíches naturais.

Começou lembrando alguns desafios. Estaria fazendo ficção, como de costume? Verdade é que, sempre que pensava em iniciar um livro, apenas esboçava uma história, que contava para alguns amigos, observando reações, enquanto a desenvolvia para si mesmo, acrescentando novos e novos detalhes. Depois saía de cena, falava em terceira pessoa e atribuía o relato a um personagem, desenhado na medida certa para vivê-la com realismo e verdade.

Seja como for, procurei entrar no pensamento e nos sentimentos dele. E imaginava cada cena, que bem poderia ser do seu próximo romance. Por exemplo, aquela em que ele estava resfriado, a coriza saltando aos olhos e pelo nariz afora, enquanto se mantinha a serviço da esteira numa fábrica de alimentos naturais, onde não é permitido manusear lenço ou papel para higienizar o nariz. “Stop line!!!” – alguém gritava, e tudo parava, irritando pessoas e comprometendo a produção.

Imaginei a cena e me veio a pergunta da qual não pude fugir. Procurei ser honesto.
– Fiori, desculpe-me a crueza da pergunta: a solução seria engolir tudo o que fosse possível?
– É, é o que temos para o momento – disse ele, com expressão de repugnância.
– E quanto a tossir, como acontece nesses casos?
– Tossir sobre os alimentos? Nem pensar. É pura falta de assepsia – disse ele.

Uma coisa puxa outra, que puxa outra, e puxei outra pergunta.
– E espirrar, podia? Apenas pra lembrar, nem todo espirro é seco e bem comportado – disse eu.
– Isso mesmo. Sem contar que todos têm a mania de surpreender… – disse ele.
– Além de não ter a menor paciência para esperar o melhor momento de acontecer – disse eu, como se comentássemos um evento que poderia decidir o futuro da humanidade.

Stop line! | Rubens Marchioni

Não sei por que, mas acho que os pais do espirro não lhe deram educação. No melhor estilo de uma quadrilha, eles trabalham como certas coceiras, que acontecem na hora errada e no lugar ainda mais errado, por vezes numa entrevista de emprego ou durante uma reunião, agora presidida pelo diretor. “Stop line!!!”

Naquele momento, Fiori deu um espirro, meio contido, sem conseguir se desviar para não atingir alvos civis, como nos tempos em que a pandemia de covid ensinava a levar o braço ao nariz para evitar a contaminação do ambiente. Paciência, acontece. Aconteceu.

Mas pensei que o que era ruim podia ficar ainda pior. Afinal, tem também aquele dia em que, imitando a canção, nada de especial estava acontecendo – “Não é Natal, nem Ano-Bom. Nem um sinal no céu, nenhum Armagedom” – era apenas um intestino inquieto, pedindo um número maior de encontros para estar a sós com o toalete.
– Claro, tem esse dia também. Tem esse dia. Você pode ir ao toalete, mas só depois da autorização dada pelo supervisor – disse Fiori.
– Você já teve de esperar uma autorização?
– Tive de esperar, acredita? Quarenta minutos de luta. Segura e segura, não tem jeito – respondeu ele, com uma risada indignada.
– Saiu voando… – disse eu.
– Não adiantava sair voando – disse Fiori, dando uma risada que ria pouco de tudo.
– Não?! Por que não?! – eu quis saber. Seria ainda pior?
– É que antes você tem de se livrar dos sapatos e de todo o paramento que está usando – disse ele.
– Que merda, meu amigo, que merda!! – disse eu.

Um velho amigo entrou no restaurante e juntou-se a nós. Falei qual era o assunto da conversa, já que pegava o bonde andando. Ele ficou interessado e pediu a Fiori que continuasse contando suas experiências como operário no exterior.

– Quando tenho crises de neurocisticercose, elas começam de madrugada, quando estou dormindo – disse Fiori, enquanto pedi mais uma cerveja ao garçom.
– Como a crise começa? – disse o amigo.
– Eu tenho algum sonho, algum sonho característico, que só acontece nessas situações – respondeu Fiori.
– Quanto tempo dura essa crise?
– As crises são curtas, mas fazem estragos físicos e emocionais.
– Bom, pelo menos elas são curtas – disse eu.
– Uma crise é curta. O problema é que tenho várias crises, durante umas 20 horas – disse Fiori.

Pelo que me contou em outra conversa, essas miniconvulsões o deixavam impossibilitado de trabalhar naquela empresa, onde se permanece o tempo todo em pé e atendendo à velocidade de uma máquina – qualquer descuido era suficiente para comprometer o desempenho de todos. “Stop line!!!”

Certa vez Fiori me contou que no Brasil elas aconteciam enquanto ele escrevia, no local de trabalho. Ou enquanto ensinava na universidade. Mas o ambiente permitia o disfarce e a administração do problema. “Um criativo sentado, de olhos fechados” – pensariam – “certamente está procurando pela ideia inusitada, a palavra exata… Não o impeçamos, pois.” Na fábrica não era assim, é o que se pode deduzir do relato que fez.  

Quanto à esteira, ela exige concentração máxima. Ora, cada crise tira isso de Fiori e algumas o forçam a sentar para não cair. Em uma das mais fortes – me contou – por pouco não soltou um grito, para o qual não teria qualquer explicação. Impensável, na fábrica. “Stop line!!!”

O correto, nesse caso, segundo a empresa e o bom senso, a fim de respeitar o tempo de antecedência exigido, seria o meu amigo avisar o empregador até às duas horas da manhã, talvez, de que não poderia ir trabalhar, para que providenciasse a substituição. Sem falar inglês e sob o efeito de uma crise, como enviar essa mensagem? Dessa vez, “Stop line!!!” no seu prontuário. Eu imagino a situação, a saia justa.

Por outro lado, se Fiori insistisse em comparecer, permaneceria no trabalho durante meia hora, em frente à esteira, e – “Stop line!!!”. Paradeira geral e mais reclamações. Em seguida, ele irritaria o supervisor pedindo, em português, para voltar pra casa, alegando motivo de saúde. Nessas alturas, não contava mais com os serviços da sua intérprete brasileira, uma colega de esteira. “Se não está bem, por que veio?” – é natural que ele pensasse, mas ele pensaria coisas piores, acredite – sempre em inglês. De um jeito ou de outro, sua situação profissional ficaria comprometida. Como fugir disso?

Por essas e outras, Fiori se sentia testado ao extremo. Quem sabe a gente marca outra cervejinha. Naquele dia não tivemos tempo. Mas dessa vez vou pedir que me conte sobre como se sente hoje, depois da nova travessia do Mar Vermelho de volta para sua terra e seu povo. Como na Jornada do herói, de Vogler, ele teria conquistado o elixir, cuja busca o havia tirado da sua zona de conforto?


Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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