Fechar

Quem sabe, até que a morte nos separe | Rubens Marchioni

Meu amigo Augusto é jornalista, um redator que vive com arte seu papel de virtuose da palavra. No rosto, ele exibe uma barba tão bem desenhada como os textos que produz para um grande jornal. Seus olhos duros dizem tudo sobre a forma com que olha a realidade; a seu modo, ele é rigoroso no trato com as pessoas e as coisas.

Um dia Augusto sonhou. Sonhou estudar na Europa, onde faria mestrado em Comunicação Social. Quando voltou de lá, então mestre em Relações Públicas, Maurício, seu primo persistente, conseguiu um ótimo emprego e viu o prestígio crescer na família. Não se sabe por que, mas também para Augusto a titulação era mais do que um caminho seguro para a ascensão profissional.

No entanto, a decisão criou um conflito pra lá de robusto. Para torná-la concreta, Augusto teria de deixar a família. Bem, isso ele tiraria de letra. A dificuldade cresceria muito quando a conversa envolvesse a namorada, Lília, uma nutricionista enfeitada com cabelo cor de açúcar mascavo, que fazia moldura para a boca pequena e possuía um egocentrismo pouco dado à discrição.

Pudera, o casal até havia comprado dois pequenos móveis, guardados nos fundos da casa dos sogros. Naqueles objetos, os pais de Lília enxergavam evidências de um casamento que poderia acontecer sem mais demora. Era uma aposta na qual empenhavam uma parte significativa das suas fichas, mas o jogo não havia terminado e o resultado era incerto.

Em silêncio, Augusto lutou por uma bolsa de estudos. Ajudou-o a intervenção de Stella, uma professora do último ano de graduação, aficionada pela pesquisa científica num grau mais elevado – ela mesma ostentava um pós-doutorado em Jornalismo Científico, trazido de Harvard com louvor.

Augusto sonhava com uma vida feliz para ele e a namorada, um dia esposa também. Não lembro ao certo se a teria consultado sobre alguns detalhes significativos, preciso verificar. Para Lília, ser deixada de fora desse traçado seria encarar a morte. Ela jamais aceitaria explicações de qualquer natureza.

Seja como for, a verdade é que nem todos concordaram com seu projeto quase silencioso. Sobretudo os pais de Lília. O descontentamento de Eugênio chegou a confundi-lo na hora de orientar um funcionário na farmácia que capitaneava. E Lucrécia, sua esposa, nem sempre conseguiu esconder o mal-estar que sentia por essa decisão do futuro genro. Para ela, isso tudo representava uma evidente ameaça à estrutura familiar e negação de todos os valores.

De repente, o jogo virou. Sem cerimônia, a pandemia calou os planos de Augusto. Juntas, ela e as condições gerais do país guardaram todos os seus sonhos em uma gaveta, “Indeferidos sine die”.

Quem sabe, até que a morte nos separe | Rubens Marchioni

Quando considerou ter chegado a hora certa, Augusto retomou o contato com antigos professores. Também falou com amigos. Alguns o aprovaram sem restrições, exceto aqueles que se colocaram no lugar de Lília e também pensaram nas suas reações imprevisíveis. 

Augusto sabia com quem estava lutando. Seus antagonistas eram as circunstâncias familiares, além de outros desafios, todos decididos a mostrar a que vieram. Nesse cenário tenso e incerto, seguiu em frente. Como se não bastasse, ele se confundiu com alguns prazos, um erro que poderia colocar fim no seu plano de viagem e de conquistar uma titulação.

Augusto teve de decidir: ficar e pagar pela falta de determinação ou colocar tudo em risco, incluindo um relacionamento amoroso, e garantir a realização pessoal, cujo benefício não seria apenas dele.

Até prova em contrário, Augusto perdeu a luta. O prazo para a viagem, ao menos com vistas a esse empreendimento, se esgotou. Seria necessário começar tudo de novo. Por algum tempo, Augusto duvidou das suas chances de conciliar os relacionamentos que se pretendiam eternos e seu afastamento do país por alguns anos.

Ainda assim ele não parou. Voltou a falar com a professora que desde o início interveio no processo, por se tratar de uma conhecedora do assunto – ela já havia percorrido esse trajeto.

Com a mesma determinação reiniciou a luta, agora com novas forças e mais experiência. A disseminação da Covid se acentuou, sempre trazendo novas cepas, cada uma com um grau ainda maior de violência. Pouco a pouco, a vacina se tornou aliada forte nessa guerra, mas ela chegou atrasada ao seu braço.

Lília, que apareceu no início da história e era namorada de Augusto, decidiu enfim viajar com ele. Não, ela não estava totalmente de acordo. Apenas desejou ser a protagonista, a dona das próprias decisões. Talvez não fosse tão individualista como divulgavam; apenas se recusava a ter os destinos pessoais traçados por outra pessoa além dela.

Augusto conquistou definitivamente a chance de estudar na Europa. Lília, no papel de embaixadora dos pais, também já não o impedia. 

Alguns dias antes da partida assumiram definitivamente a vida conjugal. Pouco tempo depois, aconteceu também uma gravidez, indesejada com todas as forças que o momento impunha. Venceram desafios. O casamento andou bem, ninguém duvide, e o fez dentro da relatividade natural de todos os encontros, sem a garantia da imortalidade que desejavam.

De volta, Augusto conseguiu um bom emprego. Maurício, seu primo, foi fazer parte da equipe capitaneada pelo novo mestre em Comunicação Social, titulação diferenciada pelo selo inconfundível Made in England. O móvel, eternamente guardado na casa dos sogros, esconde até hoje lembranças e perguntas que não foram respondidas, porque suposições não têm o valor de um fato comprovado, não valem como prova.


Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao