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Práticas de pesquisa em História

Práticas de pesquisa em História

Sabemos todos que não se pode retroceder no tempo, seja por apenas alguns segundos, seja por milhares de anos. Assim, qualquer um pode compreender a primeira parte da afirmação do historiador francês Marc Bloch (1886-1944): não se pode mudar o passado. Mas se pode estudá-lo, como fazem os historiadores, para melhor conhecê-lo.

Ainda que bastante óbvia, a constatação é fundamental, pois coloca a produção do conhecimento histórico em situação análoga à de outras especialidades, a exemplo da Astronomia, da Geologia ou da Paleontologia, que tampouco podem reproduzir em laboratório os processos que estudam, dispondo apenas de seus efeitos e tendo que apoiar-se na retrospecção. É graças aos vestígios e aos indícios que chegaram até o presente que os pesquisadores podem propor explicações sobre o que se passou. Cada um desses campos científicos o faz a partir das especificidades de suas questões e de seus próprios métodos. O olhar treinado do geólogo lê o passado do planeta observando camadas de rochas, astrônomos postulam a origem do universo a partir da radiação cósmica, enquanto paleontólogos reconstroem animais extintos tendo por base alguns restos fossilizados. O historiador, por seu turno, trabalha por inferências com base em documentos que sobreviveram ao tempo.

Assim como a descoberta de partes de um esqueleto de dinossauro não possibilita deduzir, de forma automática, a aparência e as características do animal, tampouco uma fotografia, uma lei ou um processo criminal, tomados de forma isolada, permitem compreender por inteiro as sociedades que os produziram, mas é fato que tais elementos fornecem importantes pistas sobre essas mesmas sociedades.

A complexidade do trabalho do historiador apresenta similitude também com a atuação do detetive, a quem cabe deduzir, a partir do que encontra na cena de um crime, as motivações, o modo de agir e a identidade do criminoso, como lembrou Carlo Ginzburg (1939- ), historiador italiano, citando Sherlock Holmes, famoso personagem do escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930). Para explicar o trabalho do historiador, Ginzburg evocou ainda a figura do médico que procura por sintomas para descobrir a causa da doença do seu paciente, método que guiou, entre outros, o criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939). O historiador italiano
citou finalmente a atuação do crítico de arte Giovanni Morelli (1816-1891), célebre por identificar quadros falsificados com base em detalhes imperceptíveis para a maioria dos observadores. Nas palavras de Ginzburg: “pistas infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. Pistas: mais precisamente sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli)”.

A partir dessa ampla perspectiva, podemos entender o sentido da segunda parte da frase citada de Marc Bloch. Se o passado não pode ser modificado, a compreensão do que ocorreu, a interpretação e os sentidos que lhe são atribuídos não são fixos e imutáveis, pelo contrário, alteram-se significativamente ao longo das gerações. Longe de serem estáticas, as interpretações sobre o passado estão sempre abertas a outras
possibilidades de compreensão, o que significa que a História pode estar sempre sendo reescrita. Assim, qualquer evento pretérito pode ser revisitado, originando uma nova investigação se novos documentos ou vestígios forem encontrados e se novas perguntas – a partir de novas preocupações do tempo presente – forem feitas às fontes históricas.

E quais os passos necessários para propor uma nova pesquisa em História? A estrutura de um projeto de pesquisa apresenta poucas variações e é, em larga medida, conhecida:

  • Formula-se um problema;
  • Discute-se como esse problema tem sido tratado pela bibliografia;
  • Argumenta-se em favor da relevância do aspecto escolhido;
  • Listam-se os objetivos;
  • Identifica-se a documentação a ser utilizada;
  • Apresenta-se a metodologia, ou seja, explica-se como as metas serão alcançadas;
  • Elabora-se o cronograma de execução de cada etapa;
  • E, por fim, arrolam-se as referências bibliográficas.

De fato, saber quais são as partes componentes de um projeto é importante, porém nem mesmo a descrição detalhada do conteúdo e da função de cada uma delas, explicadas em termos abstratos, tal como se lê frequentemente nos manuais de metodologia de pesquisa, é suficiente para a proposição de questões de cunho historiográfico. Então, por onde começar? Aprendendo a pensar como um historiador. Familiarizando-se com os caminhos da disciplina, ou seja, sabendo como o passado tem sido investigado e por quais meios. Isso antecede à formulação de perguntas capazes de dotar de relevância científica a proposição de um projeto em História. Assim, inicialmente, é essencial ter em conta as diversas formas de relacionamento dos historiadores com os acontecimentos pretéritos e seus vestígios, observando o que há de específico num projeto historiográfico.

Aqui neste livro, o leitor é convidado a percorrer um amplo panorama que tem por finalidade apresentar, de forma didática, procedimentos e métodos que distinguem a produção do conhecimento historiográfico e, desse modo, incentivá-lo a participar ativamente desse instigante desafio que é escrever História, elaborando e executando seu próprio projeto de pesquisa.


Tania Regina de Luca é professora de cursos de graduação e do programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, campus de Assis. É mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Pela Contexto, é organizadora dos livros História da imprensa no Brasil e O historiador e suas fontes e coautora dos livros Nova História das mulheres no BrasilFontes históricas, História da cidadania e Trabalho na História do Brasil (fora de catálogo).  E autora Práticas de pesquisas em História.