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O nascimento da História científica

O surgimento da História científica coincidiu com o nascimento da História Antiga. Representou a junção das teorias sociais e políticas da época com a leitura crítica das fontes escritas antigas e a sistematização dos repertórios de fontes recolhidas pelos antiquários. A primeira grande obra sobre a História Antiga foi O declínio e queda do Império Romano, do escocês Edward Gibbon, escrita entre 1776 e 1788, que encarava o século II d.C. como a época áurea da humanidade e atribuía o declínio do Império, ao menos em parte, à influência nociva do cristianismo.

Várias ideias novas confluíram na construção da História Antiga como disciplina científica e muitas delas afetam seu ensino até os dias de hoje. A exclusão do Oriente foi uma delas. Em muitas universidades, o estudo da Bíblia, do Egito, da Mesopotâmia e do cristianismo tornaram-se especialidades à parte. A História Antiga passou a ser obra de especialistas, quase sem comunicação entre si. E permanece assim até hoje. Além disso, impulsionada pelo romantismo, a História Antiga tornou-se uma História de nações. Uma nação era concebida como sendo formada por um mesmo povo, com uma mesma língua, uma só ancestralidade, uma cultura comum, um só Estado. Para a maioria dos estudiosos, a História das nações europeias começava na História da nação grega.

Ao mesmo tempo que os modernos Estados nacionais surgiam na Europa, os historiadores da Antiguidade buscavam Estados e nações na Grécia e em Roma. Era inevitável que assim fizessem, pois era assim que concebiam que toda sociedade devia ter se organizado. Mas, dessa necessidade, surgiram dois dilemas, que ainda se refletem no ensino. Nunca houve um Estado grego, uma Grécia na Antiguidade, cuja História pudesse ser narrada de modo contínuo. Os gregos podiam ser considerados uma nação, mas sem um Estado único. E Roma era apenas uma cidade, em meio a tantas outras. E no período imperial, quando constituía realmente um único Estado, englobava muitas nações. A História do Império Romano tornava-se, assim, quase impossível, a não ser como a História da sucessão de imperadores individuais. Essas questões conceituais apareceram nas primeiras Histórias da Grécia, como a escrita por George Grote (1846-1856), ou nas famosas Histórias de Roma, dos alemães Barthold Niebuhr, publicada entre 1812 e 1828, e de Theodor Mommsen (1854-1856). Ambos enfatizavam a História do Estado, dos grandes personagens e das grandes guerras. Não devemos considerá-las errôneas. Representam o conhecimento que se podia ter à época e foram verdadeiros marcos da História científica. Pela primeira vez, historiadores contemporâneos conseguiam interpretar fatos e acontecimentos de mais de dois milênios atrás com mais rigor e precisão que os historiadores antigos.

Um novo olhar para o passado
Na segunda metade do século xix, a História Antiga recebeu um novo impulso, proveniente da História Natural e do surgimento da Antropologia, da Sociologia e da Arqueologia. Abriram-se novos campos para o conhecimento das Ciências Humanas: a sociedade, a família, a comunidade, a economia, a cultura e a religião. O grande marco dessas novas concepções foi, sem dúvida, o livro de Charles Darwin, A origem das espécies, publicado em 1859. Mas Darwin era apenas parte de um movimento mais amplo.

A partir dos anos de 1860, a própria noção de tempo sofreu uma mudança drástica. Para fornecer um contraponto, em 1654, o bispo anglicano Ussher havia calculado a criação da terra no dia 4 de outubro de 4004 a.C. Foi essa noção de um tempo curto que as ciências, no final do século xix, aniquilaram. Séculos e milênios se abriram. Não apenas para a evolução da vida, mas também para a transformação do próprio homem e da sociedade humana. O homem primitivo, que antes era visto apenas como um contemporâneo atrasado, passou a fazer parte da História de todos os homens. Toda a História passou a ser vista pelo ângulo da evolução, pelas etapas da evolução, pela noção de mudança e de progresso.

A própria ideia de evolução não era nova. Em 1774, o alemão Johann Winckelmann havia publicado sua História da arte da Antiguidade, influente até hoje, na qual organizava a arte grega em períodos e descrevia seu desenvolvimento até o que considerava seu ápice: a arte ateniense do período clássico (século v a.C.). Em 1825, um arqueólogo dinamarquês, Christian Thomsen, havia organizado as coleções de objetos do Museu Nacional da Dinamarca, recolhidas de sepulturas, segundo o que acreditava serem três períodos do desenvolvimento da tecnologia do homem pré-histórico: a Idade da Pedra, a Idade do Bronze e a Idade do Ferro. O catálogo de Thomsen foi extremamente influente, tendo sido traduzido para várias línguas. Criou uma forma de organizar o passado que, como veremos, ainda é importante.

Essas ideias, no entanto, só se tornaram hegemônicas entre o final do século xix e o início do xx. As mais importantes foram: a ideia de evolução, a de civilização, a de progresso e a da superioridade da Europa sobre o resto do mundo. Elas estão intimamente ligadas ao desenvolvimento tecnológico e à expansão imperialista das potências europeias sobre o planeta. Foi no bojo delas que se desenvolveu outra ideia, que teria consequências dramáticas: a da superioridade racial dos europeus.

Foi nesse período que a História Antiga se tornou o início de uma linha progressiva de civilização. Graças às descobertas arqueológicas no Egito e na Mesopotâmia e à decifração dos hieróglifos e da escrita cuneiforme, alguns estudiosos colocavam o início dessa linha no Oriente Próximo, como o grande historiador alemão Eduard Meyer. Sua História universal foi a última a conseguir reunir, num todo, as Histórias do Egito, da Mesopotâmia, da Grécia e de Roma. Outros historiadores, a maioria, preferiam iniciá-la com o “milagre” grego. Foi então que se consolidou a ideia de que a História do Ocidente era o centro da História Universal e que a Europa capitalista representava o ápice da História mundial, a verdadeira civilização, cujo destino era o de expandir sua cultura superior para o restante do planeta. O Império Romano foi também repensado como instrumento de civilização ocidental. Com suas conquistas, o Império romanizara antigas regiões bárbaras, levando a elas a possibilidade de receberem e aceitarem a civilização greco-romana.

Saiba mais sobre no livro História Antiga que faz parte da coleção História na universidade


Norberto Luiz Guarinello é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de História Antiga do Departamento de História da mesma instituição. Pela Contexto é autor dos livros História Antiga e História da Cidadania.