A principal diferença entre o ser humano e todos os demais animais do Planeta Terra consiste no fato de nós sermos os únicos a produzir, organizar, armazenar, intercambiar e consumir cultura. E dentre os bens culturais produzidos pelo Homo sapiens nenhum tem cumprido papel mais relevante do que o livro. Há séculos, mais do que qualquer outro objeto, o livro tem sido o próprio símbolo da cultura.
Onerar o livro, transformá-lo em artigo de luxo, é impedir que uma parte significativa da sociedade tenha acesso a ele. É, na prática, uma forma “hábil” e aparentemente indolor de, por exemplo, lançá-lo a uma fogueira, coisa de regimes totalitários como o nazista. Taxar o livro é uma metáfora de queimá-lo. Proibir que o saber e a emoção contidos no livro circulem é atitude inquisitorial e antidemocrática. Destiná-lo a poucos, colocando uma taxação, é driblar a vontade do Povo expressa em nossa Constituição (é só ler; lá está escrito que o livro é imune a impostos). É usar para o mal o jeitinho brasileiro. É tentar enganar a todos, impedindo os mais pobres de escolher o que querem ler. É transformar a maior parte da população em dependente da boa vontade de ministros e de “ideólogos” de plantão. É uma atitude culturalmente indefensável, socialmente autoritária, historicamente retrógrada. Temos todos que lutar contra ela.
Afinal, o que contém esse objeto, que aparentemente não passa de um conjunto de folhas impressas coladas cercadas por dois pedaços de papelão para assustar tanto as pessoas a ponto de encontrar pretextos para dificultar sua livre circulação? Será porque o malandro do livro já anda se disfarçando e adquirindo uma forma digital? De que forma o livro ameaça esses que, como nosso ministro de economia e sua turma, acham melhor deixar o objeto e seu conteúdo reservados para poucos e bons, gente fina e rica que pode, como diz o tal ministro, pagar um pouco mais pelo luxo de ler? Que mal o livro poderia fazer às demais pessoas, a filha do operário, que conseguiu entrar na faculdade e quer ser professora, o filho do lavrador, que está terminando o curso técnico, o filho do migrante nordestino, que estuda Direito? Que mal o livro poderia fazer à balconista da lanchonete, ao motorista de ônibus, à cabeleireira, ao feirante, ao pintor de paredes, ao entregador de pizza?
Pensando bem, o ministro (e sua turma, não esqueci) tem razão. Os livros poderiam fazer muito mal a “essa gente”. Poderia descortinar novos horizontes, mostrar sociedades mais justas e democráticas do que a nossa. Poderia alimentar sonhos que gente pobre não deveria ter (há livros verdadeiramente subversivos, que mostram rico que casa com pobre, branco com preta e até homem com homem). Pior. Pode mostrar que, mesmo no tão decantado mundo capitalista, há sociedades em que a força de trabalho é mais bem remunerada e a especulação mais taxada. Há livros que revelam que nossa querida democracia racial não é tão democrática assim, e é muito mais racial do que costumamos apregoar. Livros mostram que vários países, até pouco tempo atrás pobres, estão superando seus problemas a partir da construção de um sistema universal de escolas públicas de qualidade, gratuitas para todos até o fim do ensino médio (dando igualdade de oportunidade a todos). Livros vão mostrar também que, ao contrário do que ocorre por aqui, nem todos os lugares do mundo premiam amigos do poder com salários e penduricalhos absurdamente altos. E, o que é mais estranho, livros talvez mostrem que a roubalheira em quase todo o mundo é muito menor do que por aqui.
Sim, ler livros pode ser perigoso. O melhor é taxá-los pesadamente, fechar as poucas livrarias que ainda restam (que tal criar uma taxa especial para elas?), afundar de vez as pequenas editoras, amordaçar o saber e impedir a emoção de respirar, amordaçar essas tentativas de tornar público o que deve ser do conhecimento de poucos. Se mesmo entre esses poucos ainda há alguns que se revoltam, imagine se todas as verdades forem do conhecimento de todos…
Usufruir o patrimônio cultural da humanidade é um direito de todos. Talentos podem se originar em qualquer faixa da sociedade e dificultar o acesso dos mais pobres a tudo o que a humanidade produziu nos últimos sessenta ou setenta mil anos é algo sem sentido. Livros devem ser acessíveis e o acesso a eles um direito elementar do cidadão. Temos a obrigação de lutar por isso.
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.