O currículo – entendido como o conjunto de aprendizagens oportunizadas no ambiente escolar – é o coração da escola. É ele que faz a escola pulsar, sonhar, desejar, planejar, discutir, disputar, lutar, fazer alianças, decidir, conquistar, ensinar, possibilitar o aprender. Ele é determinante para a escola se movimentar, acontecer, existir, e é fundamental para a sociedade que se deseja construir. Não há escola sem currículo. É muito difícil construir uma sociedade desejada sem um currículo adequado para essa construção. Por isso, podemos dizer que um currículo é também um projeto de sociedade.
Por ser o coração da escola e representar um projeto de sociedade, o currículo é sempre um território disputado. Não há consenso em torno de quais conhecimentos devem ser ensinados, de que sujeito se quer produzir ou formar e nem sobre quais elementos das culturas é preciso preservar e valorizar. Este é sempre um campo de lutas ou um território disputado por conta dos conhecimentos que seleciona e ensina – já que todo e qualquer currículo precisa responder à pergunta “O que ensinar?” –; dos valores que transmite e preserva – já que todo e qualquer currículo transmite valores –; do sujeito que demanda e produz – já que todo currículo tem como objetivo modificar alguma coisa em alguém, e tem, implícita ou explicitamente, um sujeito que deseja formar/produzir –; e por conta das verdades que ajuda a autorizar, produzir e divulgar – já que todo currículo seleciona discursos ou saberes que ensina como verdadeiros.
Mas sendo um projeto de sociedade, no qual depositamos sonhos, esperanças, desejos, paixões, expectativas e a força do nosso trabalho, é claro que o currículo existe não apenas na escola. Afinal, ele é prática e é texto escrito; é política e é prescrição; é ação e formalização; é caminho, percurso já definido e é também invenção que se faz no caminhar e no professorar. É linguagem, texto, discurso. É uma prática de significados. É campo de lutas por representação. É estruturação e é força que escapa às determinações. Pode ser mínimo – na expressão “currículo mínimo” – e pode ser máximo – na expressão “currículo nacional”. Também pode ser estadual e municipal. Pode ser maior – produzido de modo padronizado por agentes do Estado – e pode ser menor – produzido por educadoras, em processos de exterioridade ao Estado, fazendo embates com o currículo-maior e sua sede de prescrição, padronização, homogeneização.
O currículo circula, percorre, move-se, atravessa vários espaços, desloca-se, desdobra-se e conecta-se com culturas, com perspectivas variadas, com políticas, com vidas. Ele acontece nas escolas, nas salas de aula, nas políticas educacionais, nas propostas político-pedagógicas, nas faculdades de Educação, na formação docente, na pesquisa educacional, na mídia, no cinema, na cultura, no museu, nas ruas, nos mais diferentes artefatos a que temos acesso no nosso cotidiano. Ele transita!
Ao transitar, circular, movimentar, o currículo diz e é dito. Diz sobre o sujeito que se quer formar ou produzir; sobre o mundo que se quer construir; sobre o passado que foi vivido; sobre o presente que é nosso desafio; sobre o futuro que queremos viver. Ele é dito por muitas pessoas porque faz parte, diretamente, da vida daquelas que com ele se ocupam, daquelas que o perseguem: professoras, gestoras, avaliadoras, pesquisadoras, formuladoras de políticas educacionais etc. Mas ele faz parte também, de diferentes formas, da vida daquelas pessoas com as quais ele se ocupa, daquelas que ele persegue: estudantes, futuras docentes e profissionais das mais diferentes áreas, ativistas sociais e culturais, comunidades, políticos e políticas, famílias etc.
O currículo é formulado, debatido, avaliado, pesquisado, analisado, controlado, desejado e disputado. Daí que podemos dizer que ele é constituído sempre por relações de poder, ao mesmo tempo em que exerce poder. Ele forma, produz, avalia, sugere, prescreve, amplia, subjetiva, abre ou limita possibilidades. É por tudo isso, por movimentar tanta gente e tantos interesses, que ele foi colocado e está no centro das lutas políticas e culturais sobre que sociedade queremos construir. Está também no cerne das discussões sobre que conexões queremos estabelecer entre a educação e a vida.
Sim, o currículo sempre tratou, trata e tratará da vida. Talvez por isso o acúmulo de nossas vivências e experiências profissionais é descrito em um documento que chamamos de Curriculum vitae (Currículo da vida). Contudo, não é do Curriculum vitae que trato neste livro. Trato aqui das teorias explicativas do currículo escolar, das lutas políticas em torno desse artefato, assim como das diferentes relações que envolvem as decisões sobre o que se ensina e o que se pode aprender na escola. Ao abordar as diferentes teorias explicativas desse artefato e mostrar diferentes sentidos de currículo criados por essas teorias, ficará evidente que ele é eminentemente político e ético; é um artefato cultural disputado; um campo de luta; um território contestado, debatido e almejado.
Apesar do muito que se fala do currículo nas escolas, na política, nas faculdades de Educação, na pesquisa educacional, na mídia, nos materiais didáticos, na formação de professoras e nos movimentos sociais, não existe consenso fácil em torno dele. Daí as diferentes e conflitantes teorias explicativas sobre ele. Daí as diferentes políticas criadas de acordo ou na contramão dessas teorias. Daí as diferentes perspectivas e abordagens para discutir esse artefato e as políticas curriculares, como ficará evidente ao longo deste livro.
Os sentidos de currículo são muitos. Vários deles circulam concomitantemente em diferentes espaços nos quais transitamos, trabalhamos e estudamos. Ele é espaço do ensinar e do aprender por excelência, já que é um artefato com o qual muito se ensina e também se pode aprender. É espaço de ensino de elementos da cultura, de parte dos saberes acumulados, de produção de sentidos sobre o mundo. É uma seleção interessada de elementos da cultura que determinados grupos sociais e culturais querem preservar. É um território de luta por representações e por significados.
Currículo é também documento disputado que sintetiza jogos políticos de poder e alianças provisórias sobre o que ensinar. É aquilo que professoras fazem no cotidiano de sua sala de aula no encontro com estudantes e suas culturas. É um texto étnico e racial que pode colonizar ou efetivar estratégias de descolonização. É uma linguagem que produz sujeitos, constrói identidades ou produz subjetividades. É uma prática que pode reforçar relações de gênero ou implementar estratégias para desfazer essas relações e desarranjar divisões e normalizações que hierarquizam e produzem desigualdades. É artefato cultural que silencia ou que, mesmo sem silenciar totalmente, nega determinadas culturas – ao abordá-las superficialmente, esporadicamente e ao focar seus aspectos menos importantes –, do mesmo modo que reforça, ensina e valoriza outras.
Trata-se de um espaço de produção e circulação de saberes variados, de conhecimentos e de perspectivas diversas. Nisso reside muitas de suas possibilidades e também alguns de seus problemas. Muitos/as que vivenciam um currículo acreditam nos saberes que ali se divulgam. Muitas pessoas esperam bastante desse espaço social; confiam nas possibilidades que ali são construídas e investem nas aprendizagens que são ali oportunizadas. Por isso, podemos dizer que ele é território de possibilidades, de construção de possíveis; espaço de palavras diversas e lugar de experiências.
Com essa variedade de sentidos e dimensões, é evidente que o currículo é também território povoado por buscas de ordenamentos de pessoas e espaços; de organizações de disciplinas, campos e áreas; de sequenciação de conteúdos e níveis de aprendizagens; de estruturações de tempos e pré-requisitos; de enquadramentos de pessoas, de conhecimentos, de saberes e de horários; de divisões de tempo, espaço, áreas, conteúdos, disciplinas, aprendizagens, tipos, espécies… Ele é também espaço de silêncios de determinadas culturas; de relações de poder de diferentes tipos; de diversas tentativas de capturas, de desigualdades, de aborrecimentos e de entristecimentos.
O currículo é tudo isso porque é sempre um texto cultural; um texto vivo e de vidas, que produz sentidos sobre o mundo. Suas narrativas e significados ensinam, formam e produzem sujeitos. Por isso existem diferentes lutas, disputas e embates em torno dele. Essas lutas se dão tanto entre aquelas pessoas que planejam e decidem sobre o currículo quanto entre aquelas que o pesquisam ou ainda entre aquelas que reivindicam, em diferentes movimentos sociais e culturais, por exemplo, que ele possa contar outras histórias, incorporar outros saberes, outras narrativas, produzir outros significados, formular e dar nome a outros problemas e estabelecer outras relações com as vidas.
As pessoas envolvidas nessas lutas e disputas sabem que o currículo é uma prática cultural que possui uma política e uma pedagogia. Uma prática cultural que ensina e forma; que governa condutas e produz sujeitos. Um território incontrolável, por mais que diferentes políticas tentem controlá-lo, impondo competências comuns para uma nação, por exemplo.
Provavelmente professoras e estudantes já escutaram que currículo é “uma grade” (com disciplinas e horários); ou “uma lista” de disciplinas e conteúdos; ou “uma seleção” daquilo que deve ser ensinado às novas gerações. É possível que tenham escutado também que currículo é “um percurso”: uma prescrição de um caminho a ser seguido na escola. Também podem ter escutado ou lido que currículo é a definição de objetivos educacionais, de habilidades a serem ensinadas e de competências que se deve perseguir no ensino. É possível também que tenha lido e escutado, entre outras definições, que currículo é espaço de luta política. É por carregar todas essas definições, dependendo das teorias ou perspectivas que as subsidiam, que tivemos de conceituar os diferentes termos para nos referirmos às várias dimensões do currículo, tais como: oficial, formal, em ação, oculto, turístico, nulo/vazio, campos de silêncio, diretrizes, maior, menor…
Esses termos e dimensões são importantes para educadoras explorarem as brechas e as possibilidades que o currículo carrega. Afinal, as decisões sobre ele, por mais que existam diferentes políticas elaboradas em espaços bem distantes das escolas, não é tarefa de alguma comunidade eleita. Trata-se de uma aventura aberta que toda docente deve fazer. Por isso a importância de cada docente entender os termos usados na educação para caracterizar essas dimensões do currículo bem como as questões importantes sobre o tema para que possa construir uma atuação docente antenada e comprometida com os dilemas do nosso tempo.
Assim, currículo oficial é o conjunto de aprendizagens selecionado, organizado e estruturado oficialmente para ser trabalhado nas diferentes disciplinas, áreas de conhecimentos, anos ou ciclos de um curso ou de uma etapa da escolarização, e que possui o carimbo ou o selo de um governo, seja ele nacional, estadual ou municipal. O atual currículo oficial brasileiro, por exemplo, é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em dezembro de 2017, para a educação infantil e ensino fundamental, e em dezembro de 2018, para o ensino médio. A BNCC substituiu os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que foi o currículo oficial brasileiro no período de 1997 a 2017. Embora a BNCC seja o documento oficial nacional brasileiro contemporâneo, existem outros currículos oficiais em diferentes estados e municípios, exatamente pela tentativa de incorporar nos documentos oficiais as diversidades existentes nas diferentes regiões do Brasil, previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9394/96.
O currículo oficial é sempre um documento formalizado, seja ele construído de forma democrática, com a participação da comunidade escolar, seja ele elaborado em gabinetes fechados, por alguns especialistas escolhidos por grupos que exercem poder. Além disso, é com base no currículo oficial que são feitas várias outras políticas educacionais que afetam o ensino, tais como: avaliação oficial das estudantes e das instituições, o Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), a formação inicial e em serviço de professoras etc. Fazendo uma apropriação de conceitos e compreensões da filosofia da diferença, chamo esses currículos oficiais também de currículo-maior, porque é construído em processos interiores ao Estado – trazendo esse selo – e buscando um ordenamento estruturado e padronizado.
Então o currículo-maior é estruturado e busca a generalidade, a recognição, a representação do que já está dado, fixado, reconhecido e autorizado. O currículo-maior é pensado e construído com base em imagens dogmáticas do pensamento, que são conduzidas pelo chamado senso comum – responsável pela distribuição de conceitos e significados autorizados – e pelo bom senso – responsável por apontar o pensamento na direção do que é considerado verdadeiro. O currículo-maior opera de modo a reunir e sintetizar o já criado para normatizar. É propenso a usar diferentes estratégias de seleção, organização e ensino para buscar reproduzir, homogeneizar, controlar e delimitar a experiência educacional.
Já o currículo formal trata-se do conjunto de disciplinas, conteúdos e atividades planejadas para serem trabalhadas formalmente em uma escola ou em uma rede de escolas. Ele é definido antes do contato efetivo entre professoras e estudantes, pelo conjunto de conhecimentos que a escola ou a rede de escolas considera imprescindíveis para as estudantes em uma determinada disciplina, em um ano ou em um curso. O currículo formal é comumente elaborado com base no currículo oficial. Leva em consideração, em sua elaboração, as determinações da LDBEN e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).
Muitas vezes, sobretudo em redes de escolas privadas, o currículo formal é transformado em apostilhas ou até mesmo em livros didáticos, de modo a garantir que a professora realmente trabalhe os conteúdos e as atividades que a escola ou rede determinou. É importante registrar que todo currículo oficial é também um currículo formal, mas nem todo currículo formal é currículo oficial.
O currículo em ação, por sua vez, também chamado de currículo real, trata-se daquilo que de fato é oportunizado no ambiente escolar. Professoras sempre fazem uma leitura contextualizada dos currículos oficial e formal. É a partir de sua compreensão, de seu entendimento, de como estabelece relação entre os currículos oficial e formal e aquilo que conhece, defende e vive que a professora faz o currículo em ação nas escolas. Além disso, o currículo em ação é constituído por todos os tipos de aprendizagens que as estudantes realizam como consequência de estarem escolarizadas. É o efeito de viver uma experiência em um ambiente, como o escolar, que possibilita o contato com determinados conhecimentos, valores, saberes, relações, comportamentos, experiências. Nele, tem-se acesso não somente a conhecimentos, mas também ao currículo externo de cada professora e de cada estudante. Tem-se acesso a encontros com culturas distintas que possibilitam aprendizagens não planejadas no currículo oficial e no formal. Nele, há aprendizagens explícitas e há também aprendizagens ocultas. Mas essas aprendizagens se dão todas na ação de educar ou no ato de ensinar e aprender. É nele que a professora pode perceber a sua dimensão de incontrolável. Afinal, há inúmeras possibilidades quando estudantes, docentes, saberes, culturas variadas, diferentes materiais curriculares, expectativas, desejos, sonhos etc. se encontram no espaço escolar. É nele, portanto, que podemos criar o currículo-menor que, por sua vez, vira as costas ao currículo-maior.
O currículo-menor é construído em processos de exterioridade ao Estado, por docentes que se abrem a experimentar no cotidiano da escola, conectando-se com a alegria afirmativa de educar e com o desejo de aprender de quem não tolera e nem compactua com o intolerável.
O rompimento com a representação por meio da desterritorialização; o entendimento de que tudo nele é político; e a busca de seu valor no coletivo contagiado pelo campo político, manifestando-se como uma comunidade em vias de desagregação, são importantes características de um currículo-menor. Trata-se de uma forma de intervenção nas práticas da educação e da sociedade porque aciona a resistência e faz o irrompimento da diferença no currículo. Traz consigo a singularidade, a multiplicidade e o acontecimento, de modo a promover uma desterritorialização do currículo-maior para realizar o processo de criação na educação.
Já o currículo oculto é o conjunto de aprendizagens ou efeitos de aprendizagens que se dão como resultado de certos elementos, relações e experiências presentes no ambiente escolar, mas que não são intencionalmente buscados, não estão previstos nas DCNs, nem no currículo oficial ou formal e nem naquele planejado e explicitado pela professora. O currículo oculto é vivido na escola de forma não planejada e nem prevista. É constituído por todas aquelas aprendizagens obtidas no ambiente escolar que contribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes. Trata-se de saberes, normas, comportamentos, atitudes e valores ensinados implicitamente nas atividades escolares, porém não mencionados pelas docentes, nem pelas estudantes ou não intencionalmente buscados por elas.
O currículo oculto é constituído tanto de práticas e saberes como de mensagens não explicitadas, mas que afetam, positiva ou negativamente, o processo de aprendizagem. Os conhecimentos adquiridos fora da escola, com família, amigos, a mídia, literatura, o cinema, os movimentos sociais, o trabalho ou mesmo no interior da escola, nas brincadeiras dos corredores, na forma de dispor as carteiras, na maneira de se relacionar com professoras e colegas podem se constituir em aprendizagens do currículo oculto. Afinal, trata-se de uma dimensão implícita, não mensurável e informal da prática pedagógica, que faz parte do cotidiano escolar, oportunizando experiências que reforçam o aprendizado sociocultural, na inter-relação docente-estudantes-saberes.
Contrapondo-se ao currículo oculto, o currículo explícito representa a dimensão visível, dizível e observável desse artefato. Constitui-se nas aprendizagens intencionalmente buscadas ou deliberadamente promovidas por meio do ensino e explicitadas no processo ensino-aprendizagem. É aquilo que a docente diz que vai ensinar e, de fato, ensina, podendo ser visto, registrado e avaliado. As docentes fazem as avaliações das estudantes com base no currículo explícito ensinado.
O currículo turístico, por sua vez, é constituído por elementos das culturas que não exercem poder e que, embora não sejam completamente silenciadas, são trabalhadas apenas em unidades didáticas isoladas ou em dias letivos específicos nas escolas. Ele faz com que saberes referentes aos grupos culturais que não exercem poder promovam uma espécie de turismo na escola, na forma de breves passeios e pequenas lembranças. Comumente, o currículo turístico trabalha essas culturas, que costumam ser negadas na seleção dos conteúdos, de forma desconectada tanto da própria história e luta daquela cultura quanto do restante do currículo escolar. Além disso, muitas vezes são ensinados apenas aspectos banais e sem importância daquelas culturas, e de forma caricaturada e estereotipada.
O currículo vazio ou nulo, também chamado de campos de silêncio do currículo, trata de conhecimentos e saberes ausentes, tanto das propostas curriculares prescritas – currículos oficial e formal – como das práticas das salas de aulas – currículos em ação – que, muitas vezes, abrangem conhecimentos significativos tanto para a compreensão e atuação na sociedade como para o exercício da cidadania. É o silêncio de um tema importante para o nosso presente e para a sociedade que desejamos construir. É a privação de um conhecimento, de um saber, de uma cultura; é um calar imposto de um tema que incomoda; um não problematizar, não explorar e não explicar algo que, por se manifestar nas relações escolares, familiares e sociais, “pede” para ser trabalhado, incluído e explorado. A compreensão dos campos de silêncio ou currículo nulo é fundamental para que a docente possa entender esse território como espaço de afirmação e negação de elementos das diferentes culturas, que produzem efeitos sobre a estudante, tanto em função do que diz quanto daquilo que silencia.
No Brasil existe, ainda, um documento chamado “Diretrizes Curriculares Nacionais” (DCNs). Trata-se de normas e procedimentos obrigatórios para a Educação, discutidas, elaboradas e determinadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) para orientar o planejamento do currículo da instituição ou da rede de ensino, auxiliando na organização, articulação, desenvolvimento e avaliação de suas propostas pedagógicas. As Diretrizes foram originadas a partir do entendimento de uma determinação da LDBEN, que afirma – no inciso IV do artigo 9º – ser de responsabilidade da União “estabelecer, em colaboração com os Estados, Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e os seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar a formação básica comum”. Importante destacar que as próprias DCNs, em consonância com a LDBEN, determinam a autonomia da escola e da proposta pedagógica e reconhecem a liberdade que as instituições de ensino possuem para elaborarem seus currículos, dentro das áreas de conhecimento exigidas e que estão descritas nas Diretrizes. A escola, portanto, pode trabalhar o conteúdo presente nas DCNs de acordo com o contexto em que está inserida, com o Projeto Político Pedagógico da Escola, com seus desejos e objetivos, sempre levando em consideração o público atendido pela escola, bem como sua localização e outros aspectos que considera relevantes para que todos tenham acesso a uma educação de qualidade. Importante registrar ainda que as DCNs são diferentes de um currículo oficial – como é a BNCC, por exemplo. As Diretrizes são orientações, guias, rumos. São linhas que definem e regulam um traçado a seguir. Elas são indicações para se estabelecer um plano, uma ação; as normas de procedimento que as escolas, redes ou secretarias devem seguir ao elaborarem seus currículos. Oferecem metas e objetivos a serem buscados e alcançados nas diferentes etapas da educação básica e em cada curso.
Com todas essas dimensões, é fácil perceber que o currículo se diz de diferentes modos; isto é, existe uma variedade de modos de enunciálo e diferentes dimensões dele a serem exploradas. Ao mesmo tempo, cada currículo é único porque se conecta, de modos distintos, com tempos, espaços, saberes, culturas, instituições e pessoas, nos diferentes espaços por onde circula. Trata-se de um espaço habitável e habitado por pessoas de diferentes classes sociais, de diferentes culturas, localidades, idades, gênero, etnias, valores, em que se oferece a possibilidade da palavra e de aprender trocando formas de pensamento muito distintas.
Isso tudo evidencia que está em jogo em um currículo a constituição de modos de vida, a tal ponto que a vida de muitas pessoas depende desse artefato. Quando muitas vidas, para serem “vidas vivíveis”, dependem das instituições, nós, educadoras, precisamos olhar com zelo e permanente problematização para elas. Este é o caso do currículo, já que ele pode ser espaço de importância vital para muitas vidas. Afinal, ele é o coração da instituição escolar e território permanente de disputas e contestações.
Por tudo isso, o currículo ganhou um lugar de destaque na própria epistemologia educacional, como mostra este livro. Aqui são apresentadas, portanto, tanto as diferentes teorias de currículo que disputam sentidos sobre esse tema quanto as políticas de currículo no Brasil que priorizam elementos dessas teorias e descartam ou desconsideram outras. Isso faz com que nós, educadoras, necessitemos compreendê-las para também nos posicionarmos nessa longa luta em torno do currículo, espaço em que se efetiva nossos próprios projetos de sociedade.
Quero registrar ainda que neste livro utilizo a desinência indicativa do feminino para me referir a professoras e professores, educadoras e educadores, alunos e alunas, pesquisadores e pesquisadoras, autores e autoras, mestres e mestras, quando a intenção é generalizar, ou seja, para denotar ambos os gêneros, feminino e masculino. Como exceção, só uso o “masculino genérico” quando sintetizo ideias de autores que escreveram usando-o. A justificativa para usar o “feminino genérico” é de ordem política, e busca produzir um estranhamento da linguagem, que costuma ser usada no masculino para generalizar, com o argumento de que a linguagem é neutra. Com todas as problematizações da linguagem feita pela “virada linguística”, como será mostrado neste livro, já está evidente que de neutra a linguagem nada tem. Na educação, é importante encontrarmos estratégias para mudar a linguagem sexista que faz parte de todo um sistema de exclusão e silenciamento do feminino. Como veremos ao longo deste livro, o currículo, sendo parte desse sistema, é generificado também pela linguagem que ele autoriza e divulga.
Marlucy Alves Paraíso é professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Programa de Pós-graduação em Educação da mesma instituição. Possui doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É pesquisadora Produtividade em Pesquisa do CNPq Nível 1B e fundadora e coordenadora do GECC: Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas da UFMG. Seus trabalhos de ensino, pesquisa, extensão e orientação têm como foco os currículos da educação básica, currículo e diferença, currículo e culturas, currículo, gênero e sexualidades.