Na minha primeira manifestação política, aos 9 anos de idade, fiquei do lado dos operários. Eu conto como foi: meu tio, irmão de minha mãe, morava conosco, em Sorocaba, perto das oficinas da então Estrada de Ferro Sorocabana. Ele lia diariamente o vespertino “A Gazeta”, que eu ia comprar em uma banca ao lado da porteira que guarnecia os trilhos. Naquele dia vejo um movimento atípico. Operários correndo de um lado para outro, gritando palavras de ordem, e policiais arremetendo seus cavalos, sabres desembainhados, contra os trabalhadores. O embate era desigual, mais parecia um massacre. Volto correndo até a loja do meu pai, a 150 metros do local, e chego assustado, sem fala. Pais e tio me perguntam o que havia acontecido e eu só consigo balbuciar uma palavra: pogrom.
Judeus massacrados pela polícia do czar, ou operários atacados pela polícia do então governador Adhemar de Barros, tudo era pogrom para o menino. Eu ficava, é claro, do lado dos mais fracos. Sempre fiquei, desde então.
Já no colégio criei um jornal, “A Luta Estudantil”. Para viabilizar suas oito páginas, formato tabloide, saí tentando convencer comerciantes sobre a importância de eles anunciarem em um órgão de imprensa ainda inexistente, feito por estudantes de esquerda, com tiragem prevista de 2000 exemplares, mixaria em uma cidade com três jornais diários que a cidade comportava na ocasião, todos com tiragem bem superior. Mais tarde, já universitário, fui ligado ao pessoal da esquerda, favorável às reformas de base. Nos anos 1970, criei, junto com Florestan Fernandes e José de Souza Martins, a revista “Debate & Crítica”, que se tornou trincheira intelectual contra a ditadura. Faziam parte do nosso conselho editorial intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda, Maria Conceição Tavares, Paul Singer, Antonio Cândido, Fernando Henrique Cardoso e muitos outros. Fechada pela ditadura após dois anos de funcionamento, criamos, em seu lugar, outra revista com o mesmo papel de fazer uma frente democrática, a “Contexto”, cujo nome usei para batizar a editora que eu viria a fundar mais de duas décadas depois. Muita gente ainda tem todos os exemplares publicados de “Debate & Crítica” e de “Contexto”, pela importância dos textos publicados e pelo seu significado histórico. Fazer oposição naquela época era um pouco mais complicado e arriscado do que berrar “fora este” ou “fora aquele” e achar que com isso se torna um grande democrata…
Não olho para as posições que tive ao longo de minha vida com condescendência. Creio que generosidade, desprendimento e preocupação social não deve ser um traço apenas dos jovens. A desigualdade social em nosso país é tão flagrante, as condições de existência e as oportunidades são tão desiguais que fechar os olhos para elas seria como se esquecer dos pogroms promovidos pelo czarismo contra os judeus do Império Russo. Famílias sem moradia, esgoto a céu aberto, escolas e hospitais precários continuam me sensibilizando e declaro a todos que não faço parte do grupo que quer que as coisas permaneçam como estão, ou, menos ainda, das viúvas da ditadura, que muitos querem de volta sem sequer ter conhecido… Com esses não faço aliança alguma, nem estratégica, nem tática. E se concordamos em alguma coisa, seguramente é por motivos diferentes. Provavelmente opostos.
Mas, afinal, você é a favor ou contra a condenação do Lula?, perguntaria o apressado, o leitor superficial de mensagens da web, o afoito, o superficial. Ora, como posso ser “a favor” ou “contra” a lei? A lei proíbe a corrupção. Quem for comprovadamente corrupto deve pagar por isso. A esta altura não se pode mais ter dúvidas sobre o fato de que muita gente que estava no poder, ou muito próxima dele, procurou arrecadar dinheiro irregularmente para si próprio ou para fazer com que seu partido se perpetuasse no poder. Isso a lei não permite. O corolário é que todos que afrontaram a lei, sejam de que partido for, devem ser punidos.
Quem constata isso tudo se transforma, de um momento para outro, em direitista? Bobagem. Quem é a favor de Lula fingindo que não aconteceu nada é um verdadeiro homem (ou mulher) esquerdista, opositor das elites econômicas brasileiras? Bobagem maior ainda. Defender os pobres no discurso, mas na prática fazer aliança com os ricos é coisa de populistas. E o populismo já causou muito mal ao Brasil. Ser contra esse comportamento não é atitude de conservador ou direitista.
É questão de coerência. É lutar pelo avanço social e econômico do país.
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.