Sócrates dizia que uma vida não pensada não vale a pena ser vivida – talvez haja um exagero aqui, mas deixemos isso pra outro momento. Por “pensada” ele quer dizer “filosófica”, uma vida analisada de forma distante do banal. A banalidade na vida é uma forma de ácido que tudo corrói, reduzindo o cotidiano ao vazio. A alma é um ser que habita o mundo do sentido. Uma vida filosófica busca esse mundo do sentido. E esse sentido pode estar no detalhe. E, às vezes, sentimos que vivemos num deserto de sentido. Mas, não pense que sentido é algo abstrato. Não, é concreto como uma pedra, brota dos vínculos concretos que temos com a vida e com as pessoas e com as ideias e os afetos. Sentido não é vazio de matéria humana, jamais.
Há uma distância histórica enorme entre os gregos antigos e nós, mas eles continuam sendo aqueles que fizeram todas as perguntas que nos orientam até hoje. De onde viemos? Por que existe o universo? Há mesmo o Bem e o Mal? Devo buscar uma vida honesta? Vale a pena ser bom? A linguagem descreve o mundo tal como ele é? O que é o amor? Existem formas distintas de amor? Como é a vida após a morte? Os deuses existem? E se existem, têm um plano para nós? O que é uma vida política justa? Como organizar essa vida? Enfim, tudo.
O cotidiano nem sempre é tomado apenas por essas questões profundas. E nem só delas vive o homem, mas também de banalidades. Muitas vezes, ele é tomado por questões “menores”, e é a elas que nos dedicaremos aqui. O cotidiano tenderá a ser mais pobre no futuro. Mais entediante e previsível. Refletiremos sobre pequenas questões neste livro, não sobre as grandes questões citadas acima.
Escrevo este livro sob as “bênçãos” do trágico grego Eurípedes, citado na epígrafe de abertura. Na sua tragédia Hécuba (esposa do rei de Troia, Príamo), Eurípedes se pergunta: existirão mesmo os deuses ou a contingência cega rege o mundo?
A resposta a essa questão é um divisor de águas, mesmo que você não saiba disso. Ela não é uma simples questão de um dramaturgo distante no tempo. É ela que atormenta você quando o cotidiano, na sua cegueira do hábito, é violentamente interrompido por um fato inesperado e indesejado. Ou mesmo no silêncio do detalhe, quando você acorda de manhã e sente um mau presságio naquele dia que, desgraçadamente, se realiza. Ou quando algo de maravilhoso acontece, e você sente que jamais mereceu tamanha bênção – se você nunca se sentiu assim quando uma “graça” lhe acontece, quando algo de muito bom lhe acontece, você é um pobre de espírito, pois achar que você merece tudo de bom é uma falha grave de caráter. Cuidado: esse tipo de mau-caráter é hoje muito comum, mais do que antigamente.
Mas não pense que assumo a conclusão de que, se for a contingência cega que rege o mundo, está tudo perdido. Não, pode ser que por isso mesmo tudo ganhe outra cor. O desamparo pode ser uma forma de beleza rara quando visto pelo ângulo da coragem. Por outro lado, não presuma tampouco que crer nos deuses faz de você um idiota. Para além do fato que talvez eles existam, crer nos deuses pode ser uma razoável demonstração de saúde, ao passo que a descrença neles, o resultado de pura e simples melancolia ou incapacidade de crer na vida em si. Busquemos, nesse nosso percurso juntos, escapar de conclusões óbvias, pois essas são o atestado último de que falhamos na tarefa de não vivermos uma vida excessivamente banal (digo excessivamente banal porque uma certa dose de banalidade na vida é indício de alguma saúde mental; só gente doente e chata quer ser absolutamente relevante em tudo que faz).
Quando acordamos de manhã, nosso estado de ânimo depende de muitas coisas. E este estado de ânimo acaba por colorir o despertar com seus tons, escuros ou brilhantes. Até o modo e a disposição para comer de manhã sofrerá influência desse estado de ânimo, além de sofrer com as modas e taras com relação à alimentação que assolam o mundo hoje em dia. Esse estado de ânimo será fruto do que aconteceu no dia anterior, dos sonhos que você, por ventura, teve à noite, da qualidade do sono, de quem estava (ou não) ao seu lado na cama (se gozou ou não, sozinho ou não), das expectativas que o dia promete, enfim, de um conjunto de variáveis, muitas vezes fora do seu controle (as variáveis sem controle são o tipo de coisa que nos enlouquece, e elas são muitas). Estará você com saúde? Ou um exame feito semana passada acusou um resultado que você ainda não quis enfrentar com o seu médico?
Uma leve irritação percorre sua espinha, atingindo sua alma sonolenta. Em meio ao pão (com ou sem glúten, depende do seu grau de paranoia e de submissão às modas de comportamento) com manteiga e café preto (uma fruta antes), você se pergunta: “Por que não mando tudo à merda?” Essa será nossa questão a ser respondida. E aí começa nossa filosofia do cotidiano.
Seguiremos em direção a um mar profundo, muito distante do que o senso comum assume que o mundo seja. O mundo não é um mar calmo de evidências. É um oceano cheio de pequenas tempestades a serem vencidas. O cotidiano, nesse percurso, não é a mera passagem das horas, é o cotidiano contemporâneo, permeado pelo caráter histórico desta época em que vivemos. Um cotidiano histórico. E uma história do cotidiano.
Luiz Felipe Pondé é filósofo graduado pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado pela mesma instituição e pela Université de Paris VIII, além de doutorado também pela USP. É vice-diretor e coordenador de curso da Faculdade de Comunicação e Marketing da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É autor de diversas obras, colunista do jornal Folha de S.Paulo e comentarista da TV Cultura. Pela Editora Contexto, publicou também Contra um mundo melhor.