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E a lua se escondeu atrás da nuvem | Rubens Marchioni

Cena 1: Casal de namorados. Uso de palavras e gestos de romantismo e gentileza. O que cria uma comunicação tranquila e diálogo produtivo.  

Cena 2:  Casamento. Em muitos casos, acontecem mudanças sérias na comunicação. Abre-se espaço para que o ambiente familiar, com suas tarefas, roube a cena.

Durante o namoro, o casal que está na janela vê a lua no céu. “Olha a lua, que linda…”, diz a namorada. “Pena que ela se escondeu atrás da nuvem” – completa. O namorado não perde a deixa. “Claro, ela se escondeu humilhada pela sua beleza.” É lindo.

Vem o casamento. O diálogo começa a ficar truncado. A cena da lua toma novos contornos. De novo o marido não perde a deixa. “Não tá vendo que vai chover, sua tonta?!” – com o que encerra a conversa iniciada pela esposa extasiada. É triste.

Namorados, os dois vivem com graça e humor a experiência do bife queimado, esquecido no fogo. É que durante o preparo do almoço apareceu um beijo. O beijo pediu um abraço, e este se alongou. O beijo e o abraço saíram da cozinha, pequena. E o resto da história todo mundo sabe. Mas ninguém avisou o fogão de que nessas circunstâncias ele deveria interromper a fritura.

O casal olha para aquele bife, esturricado, e dá muita risada. O namorado acusa a namorada de ser a única culpada pelo incidente, que poderia ter se transformado em algo pior, um incêndio talvez. Lembra, com severidade, que aquilo não era hora de querer beijar, abraçar, namorar. Mas ela está perdoada, porque ele gostou muito da interrupção indevida e irresponsável – santa irresponsabilidade! Ela dá o troco. Diz que o único culpado é ele, que não se controla, sempre se entrega, é um homem que não tem juízo etc. – “Eu queria apenas dar um beijinho, meu camarada. Você é que arrumou essa confusão toda. Vai ficar duas horas sem beijo”.

Rindo e brincando muito com a situação, os dois vão à padaria mais próxima.

Cada um aponta para o outro. “Você é culpado de tudo, vai pagar o lanche. E eu quero me dar bem.” “Não senhora, foi você que inventou um beijo tão gostoso, mas fora de hora, sua irresponsável. Trate de preparar a carteira. Tem de me indenizar por perdas e danos.” O lanche é feito do trivial pão com mortadela, porque a verba é curta. Uma refeição que fica deliciosa, porque não alimenta apenas o corpo. Ela serve como pretexto para novas manifestações de carinho, gentileza, companheirismo e troca de afeto.     

No casamento, o bife queimado não aconteceria. “Você não tem o que fazer? Parece criança. Quando é que vai criar juízo?” Criar juízo, nesse caso, deve ser lido como se tornar uma pessoa séria, que respeita todas as regras, sabe que o beijo pode até acontecer, mas só na hora de dormir, desde que nada parecido tenha se verificado nos últimos quatro dias. Triste.

Um beijo gostoso diante dos filhos? Jamais. “O que as crianças vão pensar dessa pouca-vergonha?” O que elas vão pensar? Que tal isso: “Que bom, meus pais se amam, quero ser assim também.” No entanto, uma boa briga, um destruindo a moral e reputação do outro, humilhando, isso está liberado. Afinal, é preciso mostrar quem manda, e que ninguém tem sangue de barata. O que os filhos vão pensar vendo a cena? Tristeza. Apreensão. Medo. Insegurança. A impressão de que ser casado é a arte de demonstrar poder. E a experiência de sentir dificuldade para engatar um relacionamento. Triste.

Um casamento sem namoro. Sem gentilezas. Sem sedução. Sem bate-papo. Sem bife queimado. Sem travessuras e bom humor. O aprofundamento da relação fica comprometido. Surge o desafio de rever a relação. É preciso dar-lhe um novo colorido, sem o qual fica tudo muito cinza, apenas com a presença da rotina massacrante.

É quando surge a pergunta inevitável: “O que é que estou fazendo aqui?”. Eis o questionamento que começa a brotar, inicialmente sem muita assertividade, até que seja processado e verbalizado. Tendo chegado ao limite, os dois podem decidir pelo rompimento – às vezes, rompimento com o antigo modelo, apenas. Juntos novamente, só que renovados? Ou cada um tomando um novo rumo em busca de uma vida que valha a pena ao lado do outro?


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto.  https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]