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Conversas com um Jovem Professor – Leandro Karnal

por Leandro Karnal, na introdução de “Conversas com um jovem professor

Tudo tem seu tempo e sua hora, garante a antiga palavra do Eclesiastes. A hora deste livro custou a chegar. Desde o primeiro contato com uma sala de aula regular, passei a fazer, como todo professor, reflexões práticas. Nosso cérebro, didático, vai acumulando uma lista de “fazer” e “não fazer”, que cresce e se modifica a cada ano. Mas o tempo das listas era o tempo da trincheira e não o da escrita. As demandas variavam, precisei fazer pós-graduação, escrever muitas coisas antes e este livro não surgia.

Enfim, chegou este momento. Acho perfeito que tenha sido em 2012. Por quê? Em primeiro lugar, acumulei quase 30 anos de magistério. Este é um tempo bom. Talvez eu esteja cansado demais quando tiver 50 anos de magistério. Talvez fosse prematuro escrever quando eu tinha 10 anos de profissão. Trinta anos é um bom tempo. A curva da experiência inclinou-se, pesada, com dezenas de lugares, milhares de alunos, centenas de colegas. Mas ainda não significa a melancolia semiamarga que a experiência, com frequência, traz para as diversas profissões. Ainda há vontade de ser professor e, se não identifico mais a labareda que incinerava tudo no início, também é evidente que não vivo um universo de cinzas. É um lugar bom: o ponto do meio para a frente, o ponto de uma avaliação que escape de dois polos enganadores – o entusiasmo excessivo e a tristeza. Ambos embaçam a visão.

Em segundo lugar, porque acho que há um espaço de grande carência para nós, professores. Há tratados excelentes sobre o conhecimento, sua gênese e sua sociologia. Estudei e leio até hoje, com prazer, reflexões sobre as armadilhas das instituições e as hierarquias de poder. Também li, com proveito, reflexões sobre estrutura e funcionamento do ensino, reformas nos currículos, história da educação, epistemologia das ciências. Tudo existe em abundância. Os bons cursos de formação de professores apresentam esse recorte. Mas faltava algo, um livro prático, com indicações que não mirassem no fim último apenas, mas no passo inicial. Faltava um texto que apontasse, a quem está começando ou já começou a sua jornada de professor, indicações que falem de conselho de classe, de disciplina, elaboração de provas, o que esperar de coordenadores etc. Faltava um manual de construção, já que existem bons textos sobre os estilos arquitetônicos do prédio pronto. Faltava, na minha visão, um texto que dissesse: misture cimento com água. Foi isso que fiz. Foi, ao menos, algo que desejei fazer. Conversei com o Leandro de 19 anos que iniciava aulas de História num colégio estadual do interior do Rio Grande do Sul, não tendo concluído o curso superior ainda.

CAPA-CONVERSAS-COM-UM-JOVEM-PROF_WEBNecessariamente, é um livro subjetivo. Claro que todo texto tem um autor. Logo, tem um sujeito e é subjetivo. Mas este livro assume essa subjetividade como meta. Fala na primeira pessoa. Indica experiências pessoais. Evita notas no limite do possível. Escuda-se pouco atrás de bons pensadores da educação. Você percorrerá essas páginas sem encontrar os grandes nomes. Isso não é um ataque a eles, pelo contrário. Trata-se de um elogio: não posso dizer a mais do que disseram, apenas posso falar de outra coisa.

Aqui você descobrirá algo menos vasto, menos ambicioso, mais prático: como dar aula, como corrigir provas, o que seria necessário lembrar numa reunião com os pais. Sem buscar a autoridade, senão a da experiência. Assim, por consequência, outros colegas, com subjetividades distintas, darão opiniões distintas. A qualidade do livro pode ser seu defeito: o que deu certo na situa-ção X, pode não ser o mesmo para a Y. O livro reconhece isso em muitas passagens.

Talvez você estranhe. Há passagens nas quais narro meus fracassos. Queria trazer isso. Primeiro, porque minha carreira é povoada de alguns fracassos e algumas vitórias. Segundo, para que possamos aprender com o que fiz de errado. Assim, ao menos, não transmito a você a sensação de que falo de uma torre de marfim linda e perfeita. Falo sobre o monte de pedras que formaram minha vida. Algumas que construí; outras que me atiraram.

O que eu desejei? Falar de forma coloquial, de igual para igual, horizontalmente, de modo direto e claro, com você, colega de profissão. Também, como quase sempre ocorre, desejei falar comigo e me ouvir e pensar se essas três décadas foram válidas e o que eu espero dos próximos anos. Foi uma conversa com outro e um fluxo de consciência comigo. Foi um diálogo de frente ao espelho com a honestidade máxima que pude pensar. É um farol misturado com espelho retrovisor.

Não acho a minha experiência a coisa mais marcante e rica do planeta. Dei aula para ensino médio e fundamental, para cursos públicos e privados, em vários lugares do país, graduação e pós-graduação, capacitação de professores e cursos livres. Tive, entre meus alunos, milionários e favelados. Utilizei livros de ponta da minha área de conhecimento e obras de divulgação as mais simples possíveis. Dei aulas particulares, aulas para pequenos grupos, para salas lotadas de mais de cem alunos na faculdade e públicos de cinco mil pessoas em ginásios. A única experiência que nunca tive, e sempre prestarei intensa homenagem, é a de alfabetizar alguém. Nunca ensinei alguém a segurar o lápis e fazer a curva da letra “a”. Admiro muito esse trabalho, do fundo do coração. Olho para o alfabetizador como um xamã, um guru eterno na vida de todo mundo e confesso, meio que com vergonha, que tenho vontade de chorar quando vejo um professor alfabetizando alguém: ali está algo que vai mudar a vida daquele ser humano para todo sempre, e para muito melhor.

Como eu disse, tenho experiências variadas, mas há pessoas com muito mais conhecimentos e com vida mais longa. Apenas juntei um tipo de atividade específica com a tradição da reflexão e da escrita. Desse traço, nasceu este livro. Tenho vontade de que ele seja lido, debatido, contestado, superado. Tenho vontade de que ele assuma seu papel de tijolo e que, na estrutura do muro completo, faça sua parte sem alarde e sem pretensão de todo.

Talvez, os grandes professores de prática de ensino e metodologia ou didática deixem de indicá-lo. Ele não é uma obra teórica. Não invoca Piaget e não cita Paulo Freire. Não busca detalhes do pensamento de Vigotsky e não cita a Lei 5.692/71. Gostaria que fosse um daqueles livros que um aluno descobre um dia, lê, passa para os colegas da sala e começa a circular como uma obra semiclandestina. Esta, talvez, seja a pretensão underground do que escrevi. Ser o endereço “quente” que não consta no guia oficial. Ser um livro sobre o qual nunca se faz prova ou seminário, mas apenas que se lê e se gosta…

Quando imaginei a obra, achei que seria importante integrar outra experiência. A professora Rose Karnal, minha irmã, leciona há 32 anos. Ao contrário de mim, concentrou suas atividades no ensino fundamental. Sempre admirei a dedicação artesanal dela ao magistério. Muito mais regrada do que eu e com outro mundo de bagagem. Achei que a obra ganharia muito com sua contribuição e pedi que escrevesse um dos pontos delicados do mundo das salas de aula: a disciplina. Agradeço a ela por ter revisto todo o texto e aceitado escrever esse capítulo.

Ao final de cada capítulo, julguei ser importante recomendar um filme. É uma maneira de ampliar a visão e dialogar com universos de imagens tão fundamentais na cultura do nosso século. Veja se puder e dialogue. Filmes apresentam uma parte da experiência da vida, pelo que dizem e pelo que omitem. Foram todos filmes que me marcaram e há um comentário sobre eles.

Tudo tem seu tempo e sua hora. Era a minha hora de escrever este livro. Talvez seja a sua de lê-lo. Se as duas horas convergirem, terá sido algo muito bom. Leia de coração aberto, mas, como sempre, leia com senso crítico. Não trabalho com verdade revelada, mas não trabalho com ficção. A verdade revelada manda aceitar. A ficção literária estimula o deleite puro. Entre um e outro, está este livro. Ache este lugar.

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