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Celular: Todo mundo armado – Parte 1

No livro Celular: democrático ou autoritário?, a jornalista Neuza Sanches mostra, com entrevistas a personalidades como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e pesquisas atualizadas, como o celular se transformou num poder nas mãos dos brasileiros e mudou a sociedade nacional. Neste artigo dividido em duas partes, com o segundo texto a ser publicado na próxima quarta (dia 29), Neuza introduz as discussões sobre os poderes transformadores do celular, traz dados sobre os impactos nas vidas dos brasileiros e levanta questões sobre as revoluções sociais que estão ocorrendo. Confira:

Celular: Todo mundo armado – Parte 1

Celular: democrático ou autoritário?
Este livro tem como objetivo responder à essa pergunta-chave. E ir além. Refletir também se o celular, através da conexão e produção de conteúdo digitais, é o novo poder nas mãos dos brasileiros e, portanto, se usado como uma “arma” de defesa e ataque às instituições. A minha jornada buscou estudar a relação intrínseca entre o brasileiro e o seu celular. Mais especificamente observando uma tendência comportamental, social, política e ampliando a discussão para o patamar econômico ao se observar as transformações profissionais e mercadológicas que o uso do celular propicia aos seus usuários no país. Para isso foram consideradas a priori três hipóteses:

  • O celular é um novo poder nas mãos dos brasileiros, pois se horizontalizou e democratizou a informação e a produção de conteúdo no Brasil através da conectividade;
  • O celular é uma arma de defesa dos internautas que o utilizam a favor da democracia, dos direitos individuais e da liberdade de expressão, além de ser uma ferramenta que facilita ações comerciais como e-commerce ou transações bancárias, por exemplo; e
  • O celular é também uma arma de ataque dos cidadãos contra as instituições como Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional, partidos políticos.

Dos anos de 1990 até 2020, o Brasil passou por transformações significativas e que favoreceram para se chegar ao cenário atual em relação ao uso desenfreado do celular pela população: chegada da internet, privatizações das telecomunicações, abertura da economia para investimento estrangeiro, inflação baixa, concorrências nos preços da banda larga, criação do celular pré-pago, chegada das redes sociais, serviços de mensagens como WhatsApp, Telegram, Messenger etc. Simultaneamente, houve ainda evolução dos celulares, do “tijolão” analógico para os modelos IOS e Android em 4G. E já estamos (quase) preparados para o 5G. Resultado: mais de 240 milhões de celulares nas mãos dos brasileiros. Ou seja, segundo a Hootsuite, 97% da população prefere o celular, mesmo confinado dentro de casa em época de pandemia e isolamento social. Na mesma toada segue o estudo feito pelo Google Survey durante o período da quarentena: para 54% dos internautas brasileiros, o celular é a ferramenta tecnológica mais utilizada para se conectar em casa.

Nada será como antes
Diante desse cenário nacional, o primeiro passo foi saber se o celular poderia ser encarado como um novo poder nas mãos dos brasileiros, por causa da horizontalização propiciada por essa ferramenta tecnológica de comunicação – pessoal e móvel – e pela democratização da informação e da produção de conteúdo através da conectividade. A hipótese ficou para trás. Acadêmicos da estatura de Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e do sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso  afirmam em uníssono: “É um poder”.

Os brasileiros, anônimos, reforçam: metade dos 97 respondentes (50%) da pesquisa quantitativa realizada para o livro reconhece que o celular é um instrumento tecnológico que de alguma forma lhe oferece poder. Pudera. Sobre a fluidez de informação – da conexão digital e da produção de conteúdo –, na esfera da academia, o sociólogo Manuel Castells afirma: “o poder dos fluxos é o mais importante que os fluxos do poder”.

É fato. Exemplos na vida real pululam todos os dias nos mais diversos noticiários nacionais e internacionais. Gravações de celulares feitas por profissionais de saúde ao festejarem a saída de pacientes curados da covid-19 como foi o caso da advogada Claudia Costa e Silva, no Distrito Federal depois de 105 dias internada. Ou mais recentemente o caso da morte de Genivaldo de Jesus Santos, preso por agentes da Polícia Rodoviária Federal em uma  espécie de câmara de gás, na viatura da corporação, no município de Umbaúba (Sergipe), no último dia 25 de maio.

Pessoas de todas as raças, credos, gêneros têm demonstrado que o celular pode ser usado como uma arma de defesa própria, a exemplo de Christian Cooper que se defendeu de ataque racista ao gravar uma mentira dita por uma jovem branca; do cabo Edson que teve gravado pelo celular o ataque preconceituoso e ofensivo de classe social; do fiscal agredido verbalmente por cumprir o seu trabalho durante a pandemia da covid-19; de uma vizinha que gravou os ataques do empresário Eduardo Fauzi contra a produtora “Porta dos Fundos”, servindo de prova para as investigações policiais. O empresário Eduardo Fauzi foi preso mesmo estando fora do Brasil e agora é réu, processado pela Justiça nacional. Ou mesmo a defesa de uma Nação, quando profissionais de saúde, acompanhantes, pacientes denunciam, através de gravações feitas por seus celulares, o descaso das autoridades em relação à falta EPIs, medicamentos etc. E os momentos em que os brasileiros saíram nas suas janelas ou terraços para gravar os panelaços a favor da democracia e contra o atual governo de Jair Bolsonaro, durante os meses do isolamento social provocado pela covid-19; as gravações feitas por moradores de favelas comprovando a violência de policiais contra jovens negros. Assim, a sociedade encontrou uma maneira de se mobilizar para fazer frente a esses desafios.

Em geral, essas cenas de humilhação duram poucos segundos. Mas em todos esses casos a arma dos ofendidos era a câmera dos celulares – deles mesmos ou de alguém próximos a eles. Postadas nas redes sociais, as cenas costumam viralizar. Foi essa mesma arma que registrou a violência policial nas periferias das grandes cidades brasileiras. As câmeras dos celulares tornaram-se, assim, um antídoto eficaz para combater os demófobos prontos para humilhar seja quem for. Em consonância com a realidade, é necessário entender o contexto dos meses passados em 2020. Ao fazê-lo, é plausível considerar que a morte de George Floyd, por exemplo, entrou para a história dos Estados Unidos.

Durante o isolamento social, por causa da pandemia do coronavírus, acompanhantes de pacientes ou mesmo os próprios profissionais de saúde denunciaram o descaso do sistema público para com os enfermos da covid-19 nas mais variadas cidades brasileiras ao gravar com seus respectivos celulares os descalabros. As manifestações nas ruas das principais regiões do Brasil deram voz ao desejo de 70% da população pela continuidade da democracia, também representada pelos poderes Legislativo e Judiciário e pelo respeito à Carta Magna. E por aí vai.

Mas e se o celular não existisse? O que teria acontecido com a morte de George Floyd, com os doentes da covid-19 desdenhados pela máquina pública? Ou mesmo com os profissionais de saúde sem os devidos equipamentos de proteção individual? E com as vozes de milhares de brasileiros das manifestações a favor da democracia? Como seriam os serviços de entregas durante o isolamento social ou mesmo como o governo federal conseguiria ajudar os mais de 50 milhões de brasileiros chamados “invisíveis”, que estão fora do sistema bancário para receber o “auxílio emergencial”? Como se poderia consumir os mais variados produtos durante o fechamento das lojas? Como os micro e médios empresários, como os donos de restaurantes, sobreviveriam minimamente durante o confinamento? Essas e outras tantas questões reforçam a realidade de não ser possível mais imaginar o dia a dia sem o celular ao alcance das mãos. O fato é que sem os vídeos gravados pelos celulares tais casos não teriam consequência alguma. Graças ao celular, essas humilhações custaram caro aos malfeitores.


Neuza Sanches é jornalista e escritora. É também consultora de marketing, comunicação e compliance. Trabalhou nos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo, e nas revistas Veja e Época. Foi chief marketing officer (CMO) dos bancos J.P. Morgan, BTG Pactual e Mirabaud (neste caso, também em compliance), além de ter atuado na Cisco. Fez pós-graduação em marketing Digital na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); e compliance, na Fundação Getulio Vargas (FGV/SP).

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