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Celular: Todo mundo armado – Parte 2

No livro Celular: democrático ou autoritário?, a jornalista Neuza Sanches mostra, através de entrevistas a personalidades como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e pesquisas atualizadas, como o celular se transformou num poder nas mãos dos brasileiros e mudou a sociedade nacional. Neste artigo publicado em duas partes (o primeiro texto você confere aqui), Neuza discute os impactos da onipresença dos celulares em nossas vidas, como essa ferramenta pode ser usada para o mal e medidas para tentarmos tornar esse uso saudável para a democracia.

Celular: Todo mundo armado - Parte 2

Fake news: o mal está vencendo?
Longos ciclos de poder cobram o seu preço. As ideias tradicionais vêm perdendo força, a política está se renovando a olhos vistos. A priori, é bom que assim seja.  O fato é que a revolução tecnológica e digital deu voz a um universo difuso de cidadãos que passaram a postular suas demandas e visões de mundo diretamente na esfera pública, sem a mediação e o filtro das tradicionais instituições democráticas. Essa ruptura produzida pela revolução digital e acentuada pelo celular nas mãos da população nacional colocou novos atores em campo, recodificou a linguagem da política, disseminou novas formas de organização em rede e incrementou movimentos de massa a exemplo do ocorrido no Brasil em 2013, quando milhões de brasileiros saíram às ruas para protestar contra tudo e todos que estavam no poder. E que levou ao impeachment de Dilma Rousseff.        

Como se sabe, a internet tem funcionado cada vez mais como uma espécie de memória auxiliar do cérebro humano: o que você não sabe, pode ser encontrado no Google ou na Wikipedia e, dependendo do que seja, no Facebook ou no YouTube. Basta escrever o que precisa usando o teclado do celular e em segundos aparece os mais diversos resultados. Com esse auxílio na palma da mão 24 horas por dia, qualquer um pode passar a ser um especialista em algo ou, pior, em (quase) tudo. Ou seja, na balança do conhecimento, o especialista de fato – o acadêmico, o estudioso, o cientista – acaba sendo colocado no mesmo patamar que os especialistas instantâneos. E estes últimos podem se transformar em fontes primárias de informações inverídicas. E assim se chega às fake news.

Um dos males da atualidade são as mensagens falsas criadas e disseminadas deliberadamente com o objetivo de causar dano a alguém ou mesmo às instituições públicas e/ou privadas.  Ou seja, as fake news não encontram respaldo na liberdade de expressão. A difusão de desinformação não está sob a proteção constitucional do exercício dos direitos e das liberdades fundamentais. Na verdade, as informações falsas são uma afronta ao Direito. Essa é a razão pela qual existe um inquérito no STF para investigar a produção e disseminação delas contra ministros do Supremo Tribunal Federal e de se ter no Congresso Nacional propostas de leis para evitar a produção e/ou disseminação dessa erva daninha digital.

A confusão sobre fato e fake news tem contribuído para turvar a clareza e o vigor com que a Constituição protege as liberdades de expressão. E nesse apanhado de esforços para se evitar, amortizar, conter, calar os mendazes da atualidade, o fato é que o celular é também uma espécie de arma de ataque aos indivíduos, às empresas, à coisa pública, enfim, às instituições devido à disseminação de notícias falsas.

Além do Congresso Nacional e do STF, a iniciativa privada também se mexeu contra as fake news. Depois de sofrer ameaça de perder verba publicitária de 900 empresas, em julho de 2020, o Facebook retirou do ar em um único dia 35 perfis, 14 páginas e um grupo no Facebook, além de 38 perfis no Instagram. Essas contas e páginas juntas tinham quase 2 milhões de seguidores e, com elas fora do ar, o alcance das ofensas e das falsas informações que circundam por meio das redes sociais haverá de cair substancialmente. Aprendizado a duras penas.

Das atitudes morosas da holding norte-americana, e dos poderes como os do Congresso e STF, surgiu uma divisão no Brasil hoje entre os que buzinam contra e os que batem panelas a favor da democracia; entre os adeptos da “cloroquina” e os “não cloroquina”; os “sem máscara” e os “com máscara”; entre os que acreditam numa “gripezinha” e ecoam o “E daí?” e aqueles que acompanham a mortandade no país por conta da covid-19. O sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso levanta a questão: “O ponto negativo é que tem fake news em quantidade. E não tem muito como lidar com isso. Essa é a questão”.          

Ele tem razão. Daqui para a frente, os resultados das eleições de 2022 – majoritária – poderão mudar o rumo da política brasileira? Provavelmente ainda não. A guerra contra ainda está em 7X1. Marcou-se um gol com as inciativas dos poderes público e privado contras fake news. Tarefa hercúlea. É como procurar uma agulha não em um palheiro, mas em um milharal. Embora os brasileiros tenham tomado conhecimento do poder dessa erva daninha virtual, há ainda um fato fundamental ignorado na sua essência: faltam investimentos na educação, inclusive na alfabetização digital; no consumo de cultura; e o hábito de leitura de livros e de informações seguras como as publicadas em jornais e revistas, digitais ou não. E lá se vão três décadas com os brasileiros carregando as bandeiras dessas reivindicações desde a redemocratização e a chegada do celular do país.

Poder e Glória
O celular é um fenômeno. É fato. Do comportamento individual ao coletivo. Na política. Na economia. Na vida do cidadão e das instituições que o rodeiam. O aparelho de um palmo, com pouco mais de 140 gramas mudou a vida da Nação verde-amarela. Seu uso tornou-se infinito. Indispensável. Obrigatório. Não se telefona mais para dar parabéns a alguém pelo aniversário. Envia-se “um zap”, com ou sem emojis, gifs, com produção própria com som e imagem, somente com som, com animações. Não se anda mais com documentos oficiais. Está tudo no celular.

O isolamento social durante a pandemia da covid-19 fez com que aumentassem as buscas por receitas e ensinamentos sobre como evitar que o jantar se transformasse numa noite de terror e pânico. Tudo é possível. A cada dia se descobre algum uso novo para o celular. Não demora para que a geração “Z” passe “conjugá-lo”, transformando o substantivo “celular” em verbo. Por outro lado, se antes a falta de modernidade produzia o subdesenvolvimento, hoje pode-se concluir, sem risco de errar, que essa mesma modernidade tem produzido o subdesenvolvimento, a exemplo dos entregadores de aplicativos ou mesmo dos ataques às instituições democráticas.

Em seu decorrer, a minha investigação para a escrita do livro escarafunchou dados, ouviu opiniões, virou pelo avesso as fundamentações teóricas, remontou parte da história do país. O objetivo foi confrontar, dilacerar, desafiar, esmiuçar as hipóteses apresentadas no início da empreitada. Números, dados, estudos, análises empresariais foram hidratação necessária durante toda a maratona para se chegar aqui. Cruzou-se a faixa de chegada. O celular é um novo poder. É uma arma de defesa e de ataque às instituições. Enfim, todo mundo está armado. Contra ou a favor de quem ou como você vai usar o celular hoje?


Neuza Sanches é jornalista e escritora. É também consultora de marketing, comunicação e compliance. Trabalhou nos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo, e nas revistas Veja e Época. Foi chief marketing officer (CMO) dos bancos J.P. Morgan, BTG Pactual e Mirabaud (neste caso, também em compliance), além de ter atuado na Cisco. Fez pós-graduação em marketing Digital na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap); e compliance, na Fundação Getulio Vargas (FGV/SP).

2 thoughts on “Celular: Todo mundo armado – Parte 2

  1. É fato que a tecnologia serve tanto para o bem quanto para o mal. Em tempos de internet tem servido mais para o mal, dado que o ser humano tem esse viés. No entanto, também tem sevido para frear políticos inescrupulosos que passaram a vida servindo-se da coisa pública e deixando de servir à CAUSA pública. Neste caso é um ponto a favor do cidadão. Reivindicações também são legítimas especialmente em um país como o Brasil onde o cidadão é considerado de segunda categoria conforme sua classe econômica e social.

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