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As organizações internacionais (OI) e o direito internacional público (DIP) na guerra da Ucrânia

O conflito entre Rússia e Ucrânia mexeu com as estruturas do mundo em 2022. A guerra, que já seria complexa apenas pelo longo histórico de relações entre os dois países, se torna ainda mais difícil de analisar quando considerados os outros fatores direta ou indiretamente relacionais – alguns, como a expansão da Otan sendo apontados até mesmo uma das possíveis causas para o embate. Geopolítica, as relações com outras nações, instituições internacionais, grupos de interesse e até mesmo as leis internacionais precisam ser avaliadas para uma compreensão adequada do atual cenário.

Por isso, convidamos os autores da Coleção Relações Internacionais para escreverem cada um sobre seu tema de especialidade e mostrar como cada um desses aspectos dos estudos em RI se relacionam e explicam a guerra entre Rússia e Ucrânia.

Confira o texto em que a professora Ana Flávia Barros-Platiau, autora do livro Organizações e Instituições internacionais, e Carlos Henrique Tomé explicam: As organizações internacionais (OI) e o direito internacional público (DIP) na guerra da Ucrânia.

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A invasão de tropas russas na Ucrânia em fevereiro de 2022 corrobora fatos importantes do século passado. O continente europeu teve grandes civilizações, avanços institucionais, tecnológicos e societais. Alguns Estados são líderes em diversas agendas interconectadas, como a securitária, sanitária, espacial, genética etc. E foram centrais na atual arquitetura institucional. Contudo, são os mesmos que colonizaram parte da Ásia e da África, bem como diversas ilhas, e causaram duas guerras mundiais.

Logo as fronteiras europeias e alhures foram desenhadas por guerras e agressões ao longo do século XX. Paradoxalmente, o continente europeu, com o arcabouço institucional mais sofisticado que existe em termos de organizações internacionais e regionais, é também o palco de conflitos armados que custaram mais vidas desde a I Guerra Mundial. As atrocidades ordenadas por Stalin (Holodomor, ou a Grande Fome, na Ucrânia entre 1932 e 1933) e Hitler (Holocausto), por exemplo, continuam marcando os cálculos estratégicos de autoridades pelo mundo afora. Desde a II Guerra Mundial, os Estados Unidos foi o Estado que mais se envolveu em guerras e operações militares. Foi também o único que usou bombas nucleares, contra a população japonesa, no governo Truman. No caso dos três Estados, inúmeras foram as violações ao direito internacional.

As organizações internacionais (OI) e o direito internacional público (DIP) na guerra da Ucrânia

Mais recentemente, a ex-Iugoslávia deu lugar a novos Estados, com conflitos armados que impactaram diretamente a arquitetura de segurança da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), da União Europeia (UE) e da Rússia. Em suma, não só as fronteiras e os regimes políticos foram estabelecidos pelo uso da força, como também foram moldadas pelos vitoriosos as instituições e organizações atualmente existentes.

Nesse contexto, quais são as principais instituições e quais seus respectivos papéis desde a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014? Indubitavelmente, a principal delas é o direito internacional público, cujas fontes centrais são os tratados, o direito costumeiro e a Carta das Nações Unidas, tanto em tempos de paz como em tempos de guerra. Além disso, há diversas organizações internacionais envolvidas nos desdobramentos da guerra da Rússia na Ucrânia.

Em primeiro lugar, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), resultante da Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa, realizada em Helsinque em 1975. Atualmente com 57 membros, ela tem uma importância histórica ímpar, com destaque para o período da Guerra Fria, marcada pelas esferas de influência de Washington e Moscou. Desde a sua criação, a OSCE foi a arena privilegiada para a solução de diversas crises geopolíticas e poderia ter sido peça-chave nas negociações sobre a guerra na Ucrânia.

Em seguida, a OTAN, fundada em 1949 como uma aliança de defesa coletiva euro-atlântica. Ao longo das décadas, a OTAN revisou o seu conceito estratégico e autorizou a adesão de novos membros, chegando a trinta atualmente. Entre os diversos “grupos de contato” criados, destaca-se o Conselho da Parceira Euro-Atlântica (EAPC), do qual faziam parte Rússia, Ucrânia, Suécia e Finlândia, e mais outros dezesseis Estados. Entretanto, um dos estopins da crise foi justamente a expansão da OTAN e a implantação de bases militares em Estados limítrofes da Rússia. A Constituição da Ucrânia prevê a adesão à OTAN, e o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky decidiu avançar com a aproximação. Contudo, ele teve seu pedido de exclusão de zona aérea ucraniana rejeitado, pelo fato de a Ucrânia não ser membro. Mesmo assim, a OTAN organizou uma resposta política e alguns membros decidiram enviar armas e outros recursos para a Ucrânia.

Outra organização central deveria ser a ONU, que foi criada justamente para garantir a paz e a segurança internacional. Porém, a ONU não teve atuação à altura do seu mandato constitutivo, malgrado os esforços do secretário-geral António Guterres para a prevenção do conflito. Enquanto a Assembleia Geral limitou-se a uma resolução em fevereiro, o Conselho de Segurança, imaginado inicialmente como um garantidor da paz, mostra-se absolutamente ineficaz (para esse fim) quando o agressor é exatamente um dos P5. A resolução proposta não foi adotada por veto russo, que é membro permanente do Conselho. O Conselho de Direitos Humanos aprovou a instalação de uma Comissão de Inquérito na Ucrânia. Destaque para o fato de que a ONU agiu tardiamente, por falta de espaço político para a prevenção e para a resolução pacífica dessa crise. Cabe ressaltar que o Brasil votou com a maioria a favor da Ucrânia em todas as ocasiões, plenamente de acordo com os nossos princípios constitucionais. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e a Agência Internacional para Energia Atômica (AIEA) têm atuado no escopo de suas respectivas competências, notadamente depois de bombardeio às infraestruturas críticas e a alvos civis, além de mais de dois milhões de pessoas que fugiram da Ucrânia.

A UE é outra organização central nessa guerra, pelo fato de o presidente Zelensky ter formalizado pedido de adesão como Estado-membro. A UE teve uma atuação diplomática importante, levando os membros a coordenarem suas ações relativas à resposta para a Rússia, ao apoio à Ucrânia nos campos militar, com o envio de armas, financeiro, com a Comissão Europeia decidindo pelo envio de 400 milhões de euros como ajuda emergencial, e político, com a condenação da guerra pelos principais líderes europeus e a recepção dos milhões de refugiados estimados para as próximas semanas.

Finalmente, a Ucrânia acionou a Corte Internacional de Justiça contra a Rússia. Acionará também o Tribunal Penal Internacional (TPI), constituído pelo Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 2002. Porém, Rússia e Ucrânia não são signatárias do TPI, o que dificultará bastante a eventual investigação dos crimes de guerra.

Nesse contexto, qual a utilidade das OI e do direito internacional? São atores centrais ou marionetes das grandes potências? Nem um nem outro. São arenas resultantes de processos decisórios e negociações diplomáticas pouco transparentes e/ou informais. As relações internacionais não se resumem de forma maniqueísta à guerra entre mocinhos e bandidos, o bem e o mal, a democracia e o autoritarismo, a diplomacia e a força, o capitalismo e a economia centralizada, o nacional e o global etc. Elas resultam de interações complexas e incessantes entre autoridades e sociedades. Enquanto as pessoas não repudiarem o uso da força armada como instrumento de política internacional, traduzida como a violência de Estado e a violência disseminada na sociedade, teremos organizações e instituições fragilizadas. E continuaremos a repetir a conclusão geral: “ruim com as OI, mas pior sem elas”. Ou, parafraseando Sérgio Vieira de Mello: as OI e o DIP serão fortes e efetivos na medida em que os Estados quiserem.

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Organizada pelo professor da UnB Antônio Carlos Lessa, a coleção Relações Internacionais reúne manuais introdutórios essenciais para as disciplinas obrigatórias dos cursos de RI. Cada obra é escrita por um ou mais autores especialistas no tema. Além do curso de RI, as obras também são indicadas para Ciência Política, Sociologia, Direito e Comércio Exterior.

Para ampliar as discussões sobre os temas das Relações Internacionais, inclusive suas relações com o conflito entre Rússia e Ucrânia, a Contexto e o Centro de Estudos Globais estão organizando o II Ciclo Relações Internacionais. São cinco lives sobre alguns dos principais tópicos das RIs. Confira a programação completa aqui.
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Ana Flávia Barros-Platiau é professora da UnB, pesquisadora do CNPq, além de diretora do Brasília Research Centre da Rede Earth System Governance.

Carlos Henrique Tomé é engenheiro civil, advogado, Mestre e Doutorando em Relações Internacionais. Consultor Legislativo do Senado Federal para as áreas de meio ambiente e desenvolvimento urbano (desde 2002).

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