Fechar

Organizações e Instituições Internacionais | Lançamento

Organizações e Instituições Internacionais | Lançamento

As Organizações Internacionais não surgem de um vazio político e legal. Ao contrário, são criadas por atores que assumem papel de liderança em momento oportuno, dentro ou fora da ONU, e logram sucesso na elaboração de seu escopo de atuação e depois de sua implementação, sem excluir o uso da força militar e econômica (Keohane, 1984). Até as organizações do século XIX passaram por padrões evolutivos semelhantes quando líderes nos processos decisórios conseguiram negociar o consenso necessário para a criação de uma dada organização. Embora alguns autores tenham defendido diferentes explicações – por exemplo, interesses geopolíticos, econômicos e comerciais, técnicos, humanitários, ambientais, entre outros –, fica claro que tais interesses não são isolados uns dos outros.

Se as Organizações Internacionais foram criadas por diferentes atores, do Estado ou externos (como os comerciantes e “empresários” do passado), ao longo do século XX houve uma intensa institucionalização das Relações Internacionais com o fortalecimento e a expansão do Direito Internacional Público. Dessa feita, as agendas de pesquisa em Relações Internacionais conformam um grande conjunto teórico e são complementares entre si. São também conectadas com outros campos do saber, como mencionado na Introdução.

O resultado do processo de institucionalização das Relações Internacionais foi o reconhecimento do Estado como principal ator, isto é, a adoção do princípio da soberania como pilar do Direito Internacional Público. Esta abordagem, denominada estadocêntrica, ou seja, o Estado é o primeiro sujeito de Direito Internacional. Consequentemente, apenas os Estados soberanos, assim reconhecidos pelos demais, têm personalidade jurídica, o que implica o direito de agir no sistema internacional e de criar Organizações Internacionais com personalidade jurídica secundária (isto é, as Organizações Internacionais são também sujeitos de Direito Internacional). Neste contexto evolutivo, o processo de criação de organizações é formalmente controlado por Estados soberanos, por meio da assinatura de tratados constitutivos – mas já houve alguns atores não estatais que influenciaram processos direta ou indiretamente.

A história das Organizações Internacionais é também fortemente marcada pelas grandes guerras. Até 1918, muitas organizações eram limitadas ao escopo local ou regional. Entretanto, com o emprego mais intenso dos instrumentos de Direito Internacional Público e da diplomacia, elas tornaram-se mais próximas do que hoje são as Organizações Internacionais. Algumas foram criadas com poucos membros e depois expandiram-se, como no caso da ONU, que contou 51 membros fundadores em 1945 e, em 2021, possui 193. Além disso, novas Organizações Internacionais foram criadas de forma mais autônoma com relação ao Estado, como o Clube Internacional de Financiamento ao Desenvolvimento (IDFC, da sigla em inglês), composto por bancos como o brasileiro Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). E outras organizações foram criadas por atores do setor privado, ao exemplo do esportivo: o Comitê Olímpico Internacional (COI) e a Federação Internacional de Futebol (Fifa), entre tantos outros. As normas da Organização Internacional de Normalização (ISO) também são resultado do setor privado, mas podem afetar diretamente a administração pública, como no caso da ISO para diversos temas, como sobre as cidades inteligentes.

Da mesma forma, não se pode esquecer aquelas que não têm status formal, mas que na prática possuem traços centrais de organizações internacionais, como grupos (G7 – grupo das sete grandes economias mundiais – e Grulac – Grupo dos Países Latino-Americanos e do Caribe), outros mais efêmeros (grupos chamados de like-minded durante uma negociação específica), fóruns (como o Ibas) e agrupamentos como o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), definido pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Existem também as organizações criminosas, como as redes de ilícitos transnacionais na Amazônia, a máfia siciliana, a Yakuza japonesa, o Estado Islâmico (EI), entre outros. Em suma, as Organizações Internacionais recobrem uma ampla lista de atores, que interagem de forma ainda pouco analisada nas Relações Internacionais. Por exemplo, parte do desmatamento florestal no Brasil é financiada por recursos oriundos de paraísos fiscais, o que ressalta os complexos vínculos transnacionais a partir dos quais as organizações ilícitas operam.

Com o processo de globalização advindo de cadeias de valor e da maior capacidade de atores não estatais de agir no cenário internacional, algumas empresas se tornaram muito poderosas em setores da mineração e petróleo, indústria e, mais recentemente, economia de dados, como Google, Apple, Facebook, Amazon (Gafa), Microsoft, Tesla, entre outras. Empresas gigantes podem ter influência muito marcante em processos decisórios, inclusive dentro da ONU (megatendência da privatização). Do mesmo modo que a intensificação das interações entre atores públicos e privados redesenhou os arranjos institucionais domésticos, também influenciou o nível internacional. Logo, a necessidade de reformas organizacionais é recorrente para atender às demandas de diferentes atores. Em suma, as organizações precisam de pessoas, processos e recursos novos e adicionais para responderem de forma mais efetiva aos desafios atuais, e assim contribuírem para a paz e segurança internacionais.

Além disso, o Direito Internacional Público passou de um direito de “coexistência” estabelecido pelos Estados soberanos reconhecendo seus próprios direitos para um “direito de cooperação”. Ou seja, foram positivadas obrigações internacionais para todos, principalmente no que concerne aos direitos humanos (erga omnes), muito além do tradicional princípio pacta sunt servanda, no qual apenas o consentimento no contrato obriga as partes. Em outras palavras, no século XIX os Estados soberanos, notadamente os europeus, construíram um arcabouço normativo que reforçou seus direitos, ao mesmo tempo que suas obrigações internacionais deveriam ser aceitas e/ou consentidas por meio de assinatura de tratados. Mas, durante o século XX, o processo de criação de obrigações impôs vários limites à soberania nacional, como a obrigação do Estado de proteger seus cidadãos, de não agredir outros Estados e de não causar danos fora de sua jurisdição nacional. Tais obrigações serão retomadas nos capítulos sobre direitos humanos e sobre meio ambiente e saúde.

Nesse contexto, a Teoria das Relações Internacionais foi inicialmente muito influenciada pela História, Filosofia, Ciência/Sociologia Política e principalmente pelo Direito Internacional Público. Como a principal pauta de pesquisa nas Relações Internacionais foi inicialmente atrelada aos desafios de segurança e defesa, as Organizações Internacionais foram tratadas como construções institucionais resultantes da assimetria de poder entre os Estados para manter o status quo em função dos interesses daqueles mais poderosos, como no caso dos vencedores da Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Por isso, a literatura especializada de abordagem realista normalmente usa o ponto de partida do princípio da soberania e do direito de legítima defesa. Considera os Estados atores unitários agindo de forma racional (baseado no interesse nacional e na geopolítica) em cenários de anarquia, isto é, inexiste autoridade acima dos Estados.

Realpolitik, hegemonia e projeção de poder são conceitos recorrentes nessa agenda tradicional. Enquanto a Realpolitik corresponde à necessidade de pragmatismo na política do século XIX, pregando metas factíveis e eventual uso da força, a hegemonia implica liderança no sistema internacional, ou seja, a existência de um Estado capaz de exercer o papel de líder, inclusive para assegurar a estabilidade internacional. Consequentemente, as Organizações Internacionais são, em geral, vistas como arenas que atendem aos interesses de uma minoria que detém o poder, em detrimento dos outros. A pauta de pesquisa realista tem prevalecido na Teoria das Relações Internacionais, mas com diversas críticas ao longo das décadas. A linha realista é reforçada a cada vez que há um grande conflito ou crise, como no caso das duas Grandes Guerras Mundiais, da pandemia de 2020 e da segurança cibernética.

Outro exemplo emblemático foi consolidado com a recente megatendência de deslocamento de poder para a Ásia Oriental, com a rápida ascensão chinesa ao status de maior desafiante da hegemonia norteamericana desde o fim da Guerra Fria. Para a pauta de pesquisa realista, as organizações internacionais podem ser instrumentalizadas e até esvaziadas pelos grandes players nas diferentes agendas internacionais, principalmente em questões de geopolítica. Isso explica por que muitas vezes grupos e coalizões ad hoc são criados às margens das reuniões do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral da ONU, por exemplo, funcionando como as alianças militares funcionavam nos séculos anteriores. Também podem ser alianças efêmeras, como os grupos likeminded, criados no esteio de negociações muito específicas, como nas rodadas da Organização Mundial de Comércio (OMC). Igualmente, Brics e Basic – Fórum Brasil, África do Sul, Índia, China –, ambos criados no início dos anos 2000, são casos analisados, em regra, a partir desse arcabouço teórico, destacando o interesse russo, chinês e indiano de fortalecer eixos em contraponto aos líderes ocidentais e à chamada “ordem liberal ocidental”.

Em resposta à agenda de pesquisa realista na Teoria das Relações Internacionais, outras agendas e debates foram promovidos. No início do século XX, evocou-se a consolidação da corrente “idealista” ou “liberal”, que corresponderia a um grande conjunto de filósofos, juristas e internacionalistas que buscavam alternativas para o emprego da força na regulação das Relações Internacionais. Com o desafio da construção de uma nova ordem internacional para substituir a pax britannica depois do final da Primeira Guerra Mundial, essa grande corrente, dificilmente passível de definição adequada, apostou no Direito Internacional como a solução para impor limites ao uso da força militar e ao risco de um novo conflito mundial. Para eles, de forma geral, se o arcabouço normativo nacional conseguiu organizar o que se chamava à época de “sociedade civilizada”, garantindo a paz social, a estabilidade e o progresso, havia chegado o momento de extrapolar o modelo para a sociedade internacional, que seria regida por regras para todos. Assim, essa linha entendia que as Organizações Internacionais eram necessárias e, portanto, deveriam ser efetivas, inclusive por vezes contrariando os interesses das grandes potências.

Com a assinatura do Tratado de Versalhes, em junho de 1919, e a humilhação dos perdedores da Primeira Guerra Mundial, ficou claro que essa corrente não teve o impacto esperado no processo decisório que culminou com a criação da Liga das Nações. Um exemplo foi o discurso dos 14 pontos proferido pelo então presidente norte-americano Woodrow Wilson. Visto pelos idealistas como um chamado à coexistência pacífica com os princípios do reconhecimento da soberania e da autodeterminação dos povos (principalmente na Europa devastada), foi interpretado pelos realistas como uma estratégia diplomática para consolidar a emergência dos Estados Unidos como a nova potência do século XX, marcando o fim da hegemonia britânica.

No período entre as duas grandes guerras e depois da Segunda Guerra Mundial, a economia política internacional ganhou muito espaço. A importância da economia e do comércio foi uma das principais constatações do debate teórico, pois evidenciou-se que os Estados dependem do bem-estar uns dos outros, mas também de atores não estatais. Se isso tivesse sido observado no Crack de 1929, possivelmente os danos materiais teriam sido mais limitados. A falência das empresas concorrentes nos Estados Unidos provocou um efeito dominó que se alastrou a outros continentes, sem que as autoridades públicas e privadas fossem capazes de pensar em alguma ação coletiva para limitar os efeitos da crise. Logo, a separação entre high politics (as metas políticas de segurança e economia, que são as mais importantes) e low politics (as demais políticas) não fazia tanto sentido, pois geopolítica e economia não evoluem de forma isolada. Em outras palavras, depois de 1945, a cooperação passou definitivamente de um ideal moral e ético para uma opção diplomática, inclusive para a defesa de interesses individuais dos Estados soberanos.

Surgiram dessa pauta de pesquisa várias ideias que inspiraram diferentes correntes, como a institucionalista, na Teoria das Relações Internacionais. Para eles, interessava defender a necessidade de criação de organizações com capacidade de regular as grandes questões internacionais de forma pacífica: ameaça e uso da força, padronização de atividades, trabalho, fluxos migratórios, direitos humanos, transporte, saúde, alimentação, tecnologias, entre outras. Um dos principais desafios foi sintetizado no conceito de integração regional das décadas de 1970-1980, com foco no processo europeu. A integração regional seria simultaneamente o meio para garantir a coexistência pacífica entre vizinhos e a inserção fortalecida nos processos multilaterais. Logo, implicava a cooperação para o alinhamento diplomático e o reforço de uma identidade compartilhada, com valores como o estado de direito, a soberania, a democracia e o comércio regulado. Em geral, os institucionalistas defendem que as organizações são, além de imprescindíveis e legítimas, resultantes de negociação em dado contexto, ou seja, capazes de moldar o comportamento dos Estados e demais atores internacionais por meio de regras para todos.

Com o final da ordem bipolar, essa corrente de análise ganhou muita visibilidade, principalmente com a criação de blocos regionais como o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta, na sigla em inglês), a Comunidade Econômica Europeia (CEE), o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e diversas outras iniciativas, sendo os asiáticos os menos interessados nesse modelo de integração. A integração europeia foi o modelo mais sofisticado e serviu como inspiração para a construção do Mercosul. O grande choque com a abordagem realista se deu porque a soberania seria então limitada por instituições regionais (regras compartilhadas), o que ainda constitui um dos principais pontos de discordância entre os diferentes escopos de pesquisa na Teoria das Relações Internacionais.

Em suma, a teoria não pode ser dissociada do contexto internacional e nem dos seus grandes fatos e tendências, como conflitos e crises. Também é fortemente conectada a outros campos de saber, de forma cada vez mais profunda, haja vista que as Relações Internacionais se tornaram muito mais complexas depois do final da Guerra Fria. Não só se abriram novas oportunidades para a participação de atores que não são sujeitos de Direito Internacional Público, criando desafios do ponto de vista do funcionamento das Organizações Internacionais, como também se consolidou paulatinamente a ideia de que a fragmentação da agenda diplomática conduziu à baixa efetividade do multilateralismo. Logo, é imprescindível pensarmos em termos de bens públicos globais, como a paz e a segurança internacionais, que levem à prevalência dos direitos humanos sobre a razão de Estado, à estabilidade do clima, ao respeito aos limites planetários, entre outros. Consequentemente, interesse vital da humanidade, riscos existenciais, política planetária, Direito Global (em substituição ao Direito Internacional Público), pandemia, governança da sustentabilidade são alguns conceitos relativamente recentes que resgatam outros conceitos, como o interesse geral da humanidade e a solidariedade inter e intragerações.

Acesse no site e conheça mais sobre essa e as outras obras da coleção relações internacionais


Ana Flávia Barros-Platiau é professora do Instituto de Relações Internacionais e pesquisadora do Centro de Estudos Globais da Universidade de Brasília (UnB). É também pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico Tecnológico (CNPq), além de  diretora do Brasília Research Centre da Rede Earth System Governance.

Niels Soendergaard é pesquisador pleno do Centro de Agronegócio Global no Insper, São Paulo, e do Centro de Estudos Globais da Universidade de Brasília (UnB). É doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, onde também desenvolveu estudos pós-doutorais. É editor-associado da Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI) e autor de Economia política global, publicado pela Editora Contexto.