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“A história pensada”: O renascimento da História como ciência*

Para compreendermos nossa situação atual temos, portanto, de identificar não só as semelhanças do presente com o passado como suas diferenças em relação ao futuro.
Mark Mazower, Continente sombrio.

Todo historiador tem o direito de engajar-se ética e politicamente, marcando com isso sua percepção da história. Esse engajamento não o alforria, contudo, para criar um passado para o qual não haja evidência empírica.
Georg G. Iggers, Edward Q. Wang e Supriya Mukherjee, A Global History of Modern Historiography.

CAPA HISTORIA PENSADA_WEB

Estevão de Rezende Martins

Tornou-se corrente admitir que a reflexão histórica tem suas raízes na Antiguidade clássica, mais especialmente em Heródoto e em Tucídides. Esses autores de língua grega marcaram o ponto de partida de François Châtelet, que em um texto clássico publicado em 1962 definiu a Grécia como o berço do pensamento histórico ocidental.1 Châtelet, desde a perspectiva filosófica, utiliza em seu título um termo próprio: historienne, cunhado pela língua francesa para designar o sentido do pensamento histórico enquanto produzido por uma reflexão intencionalmente voltada para a organização crítica da memória como fundamento do sentido da sociedade, da política e da cultura respectiva. Esse termo é empregado distintamente do adjetivo habitual, histórico (historique), aplicável para Châtelet a qualquer pensamento racional que lide com a ação humana no tempo.

Durante séculos, na tradição dominada pela cultura ocidental de origem greco-romana, a História oscilou sistematicamente entre estilos ou objetos muito diversos, como a banal existência de um indivíduo qualquer, a hagiografia política, a filosofia ou a teologia. Com o advento da crítica racional no Renascimento e, mais particularmente, com o surgimento e a consolidação das Luzes no século xviii, a História passou por uma espécie de repaginação teórica e metódica que culminou em sua cientificização. Esse processo atravessa o século xix e culmina na consolidação e no êxito social da historiografia nesse século e no século xx.

O uso indistinto do termo “história” aconselha que se busque, a guisa de proêmio, esclarecer os sentidos que possui. A polissemia da “história” é um truísmo. Justamente por isso é razoável convencionar com que sentido se está lidando aqui. Pode-se distinguir ao menos quatro usos correntes. Que conceitos estão presentes nesse uso? O primeiro é o mais genérico e impreciso: chama-se de história o conjunto (mesmo desconhecido) da existência humana no tempo, ainda que não se saiba quando começou ou quando há de terminar. Nesse sentido, história recobre qualquer ação humana e é nesse contexto que se fala, mais comumente, do “curso da história”.

O segundo sentido introduz uma circunscrição conceitual. História diz respeito à memória consciente daqueles agentes e daquelas ações que qualificam a identidade pessoal e social dos integrantes de uma dada comunidade. Crônica da especificidade, essa história continua sendo, contudo, um registro amplo do agir no tempo, restrito dessa feita a uma sociedade particular. Não raro esse tipo de registro memorial da glória (ou da pretensão) está carregado de elementos ditos “civilizacionais”, de cunho, sobretudo, político.

Um terceiro sentido promove uma restrição mais técnica. É a História enquanto conhecimento controlável e demonstrável, chamada de científica, ou ciência da história. Essa última expressão encerra ainda certa duplicidade, na medida em que mantém o pressuposto dos dois primeiros sentidos (uma História cientificamente cognoscível e explicável, mais ampla do que a metodicamente restringida), como sua base empírica suposta.

O padrão de cientificidade que se aplica é, por certo, o modelo do racionalismo moderno, cartesiano ou empirista, acentuadamente marcado pelo sucesso – mesmo que visto cada vez mais como relativo – das ciências ditas experimentais.

O quarto sentido é o que recorre ao termo “história” para designar as narrativas (de todos os tipos) com que se relata o agir passado dos homens no tempo. Com respeito aos dois primeiros sentidos, o “vou contar como foi essa história” inclui uma grande variedade de formas literárias do falar e do escrever.

Crônicas, fábulas, contos, tradições orais, memórias, anais, enfim, uma legião de possibilidades que, ao se apresentarem como “história”, mesmo se não satisfazem o contrato metódico das pesquisas científicas, servem-lhes de fonte. No caso do entendimento da História como uma disciplina metódica de pesquisa, com resultados intersubjetivamente controláveis (terceiro sentido), aplica-se, para o produto narrativo acabado o termo, algo mais técnico, de historiografia. Trata-se do “livro de História” de que se fala quando tema, autor e forma metódica de tratamento do assunto ensejam determinado grau de confiabilidade somente efetivado na História como ciência – ao menos no âmbito dos paradigmas de plausibilidade amplamente adotados hoje em dia.

Como se trata de conceitos construídos – mesmo se não arbitrariamente, mas sem dúvida de modo convencional –, é útil, para o estudioso, entender e reconstituir o caminho percorrido, no debate acadêmico e historiográfico, pelos autores e pelos textos que balizaram o debate e as maneiras pelas quais esses entendimentos foram sendo distinguidos e consolidados.

Há ainda uma grande rede de inter-relações entre o que faz a História como ciência e as reflexões da Filosofia, da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia – enfim, das ciências humanas e sociais. Questões com relação à verdade, à aptidão a conhecer, à demonstrabilidade de asserções, à relatividade subjetiva e social das narrativas, ao caráter lacunar das bases empíricas de informação, à relevância do saber histórico para a vida prática, e assim por diante, pertencem ao quotidiano do fazer histórico e da busca de sua plausibilidade.

A cada nova geração, a cada novo impacto da transformação social e cultural, o debate sobre o sentido e a função do conhecimento histórico parece sempre ocorrer contra esse pano de fundo teórico e prático. Os autores cujos textos foram escolhidos para integrar esta antologia deixam perceber como os quatro sentidos referidos se sucedem, entremeiam ou excluem. Lidam com contextos formais de técnicas de pesquisa e de formação profissional tanto quanto com missões patrióticas de constituição da nacionalidade ou do Estado. Flertam com a elegância estilística e o convencimento retórico, com a sedução da palavra ou da imagem. Ilustram, pois, por quantos caminhos começou o esforço de dar à História como ciência suas credenciais de nobreza acadêmica, de confiabilidade metódica, de plausibilidade argumentativa, de relevância político-social e cultural. Estão conscientes da fragilidade relativa das conclusões entretecidas nas narrativas, pois a cada tempo corresponde sociabilidade, sensibilidade e objetividade relacionais.2

A História cujo renascimento se organiza e estrutura na passagem do Iluminismo para o Romantismo e se consolida ao longo do século xix nos cenários do positivismo, do historicismo, das escolas metódicas – e que orienta a organização deste livro –, é a História como ciência. História como ciência, cujos resultados historiográficos são expressos em narrativas que encerram argumentos demonstrativos articuladores da base empírica da pesquisa e da interpretação do historiador em seu contexto. A historiografia, assim, encerra em si as características de ser empiricamente pertinente, argumentativamente plausível e demonstrativamente convincente. Como se chega a esse patamar metódico, social e cultural de confiabilidade? A presente coletânea quer contribuir para a reconstrução de uma parte desse percurso, na prática e no espírito do pensamento histórico europeu, responsável pela geração das matrizes historiográficas contemporâneas.

No século xix, as concepções de História e de historiografia passaram por uma mudança notável e decisiva. Esse século tornou-se conhecido como “o século da História”. Sem dúvida foi ainda mais decisivo – embora essa perspectiva nem sempre tenha estado presente – o salto dado no segundo terço do século xx e seus prolongamentos até os anos 1970. Não obstante, a análise dos progressos da historiografia em nosso tempo deve ser feita mediante o contraste com o século xix, sem o qual não se pode perceber o alcance das mudanças ocorridas no século xx.

A importância marcante do século xix para os fundamentos da disciplina da historiografia em seu estado atual deve-se a um fenômeno único, de desdobramentos complexos: o abandono das concepções relativas à investigação e à escrita da história que formaram a tradição europeia praticamente desde o Renascimento e talvez mesmo desde a Antiguidade clássica. As diversas escolas e correntes historiográficas do século xix coincidem pelo menos em um ponto: deixam de considerar a história como uma crônica baseada nos testemunhos legados pelas gerações anteriores e entendem-na como uma investigação, pelo que o termo “história” recupera seu sentido originário em grego.

A evolução decisiva para a historiografia deu-se com o que se pode chamar de fundamentação metódico-documental, basilar para a disciplina “acadêmica” contemporânea, produzida pelos tratadistas do século xix e da primeira década do século xx. Tem-se aqui a origem da grande corrente historiográfica que se chamou – de forma algo exagerada, mas não totalmente imprópria – de historiografia “positivista”, intimamente entrelaçada com a forte tradição do historicismo alemão. Foi no século xix que apareceram os primeiros grandes tratados do que se poderia chamar de normativismo histórico, um tipo de reflexão novo sobre a História, chamado de Historik por Johann Droysen. Essa reflexão definiu os parâmetros metódicos estipulados como obrigatórios para que a História se enquadrasse no que se tinha, então, por padrão de “ciência”. Essa é a razão pela qual esses tratadistas tomaram como referência específica do estudo de História a ciência natural. Tal referência em momento algum foi pensada em termos miméticos (copiar a ciência natural) ou como modelo único (num movimento pré-dogmático). Normatizar os procedimentos, contudo, para obter algum grau de densidade confiável, era percebido como uma missão, que levou à produção de textos metodológicos famosos, sobretudo na França e na Alemanha, de Buchez e Lacombe, de Ranke, de Droysen e de Bernheim, chegando a Langlois-Seignobos e a Lamprecht.

Essa mudança profunda e duradoura do horizonte dos estudos historiográficos, cuja influência se estendeu até os anos 1930, é habitualmente creditada às contribuições trazidas por uma corrente chamada, sem esforço maior de precisão, de positivismo. De outro lado, o historicismo alemão é amiúde considerado a maior contribuição do século xix em matéria de concepções da natureza do histórico e da identidade da historiografia. Ambas as etiquetas requerem cuidadosa modulação.

Com efeito, o que se chama de “historiografia positivista” não deixa de estar interpretado por um equívoco persistente. Muitas vezes chama-se de positivista, sem mais nem menos, uma concepção da historiografia essencialmente narrativista, episódica (factual), descritiva, fruto de uma erudição bem à moda do século xix. Na realidade, esse tipo de historiografia é o exemplo mais típico da “História tradicional”, mas não tem por que ser necessariamente confundido com a historiografia “positivista”. A historiografia positivista é a dos “fatos” estabelecidos mediante os documentos, indutivista, narrativa, por certo, mas também sujeita a um “método”. Um exemplo disso pode ser encontrado na obra de Hippolyte Taine, na França, ou na de H. T. Buckle, na Inglaterra, cujos trabalhos se fundam justamente nessa filosofia do “fato histórico”.

A escola que se costumava chamar de “positivista” pode ser também denominada – com mais propriedade – de “escola metódica”, já que sua principal preocupação era a de dispor de um método. Essa escola, que fundamentava o progresso da historiografia no trabalho metódico das fontes, sempre foi avessa a qualquer “teoria” ou “filosofia”. Isso não diminui, todavia, sua dependência imediata para com a concepção “positivista” da ciência, que fica evidente não apenas em obras francamente problemáticas, como o manual de Seignobos, mas também clássicas, como a de François Simiand. Trata-se, antes de mais nada, de uma corrente pragmática e empirista. Por isso pode ser chamada de escola pragmático-documental ou metódico-documental.

A “disciplina” da historiografia, no sentido contemporâneo do termo, surgiu na transição do século xix para o século xx, mediante um primeiro corpo de regras e normas metodológicas fixado sob influência do positivismo e do historicismo. Pode-se dizer que até o primeiro grande conflito armado do século xx, a Primeira Guerra Mundial, a ortodoxia historiográfica foi ditada pela escola metódico-documental. Seus principais representantes estavam na França e na Alemanha, mas não estavam ausentes da Inglaterra, dos Estados Unidos, de Portugal ou mesmo do Brasil (sendo o mais em voga Francisco de Varnhagen, visconde de Porto Seguro).

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O livro que aqui se apresenta ao leitor interessado nesse itinerário de consolidação do pensamento histórico como ciência reúne textos de protagonistas fundamentais para a virada científica da História. Essa virada se deu em um duplo e intenso debate: de um lado, com a arte de escrever e com o encanto literário do estilo. De outro, com os padrões de controle metódico requeridos pelo paradigma experimental das “ciências naturais”, dominantes na concepção mesma de conhecimento científico. Os autores e os textos que constam da presente antologia foram escolhidos em função de seu caráter estratégico para a compreensão desse percurso de estruturação dos modelos de conhecimento histórico e de sua repercussão. Optou-se por autores e textos não (ou só dificilmente) disponíveis ao público de língua portuguesa. Com isso, objetiva-se alargar o arco de fontes em português para o estudo da História e da teoria da historiografia, evitando, ao mesmo tempo, superposições improdutivas. Vale destacar ainda que o processo de seleção e preparação dos textos foi o resultado de um verdadeiro trabalho de equipe, para o qual contribuiu um grupo de jovens professores universitários, dedicados à reflexão teórica e metodológica relativa às bases da produção de conhecimento histórico confiável na historiografia contemporânea, e sobre suas origens. Esses professores integram, junto com diversos outros, um grupo de trabalho (gt) da Associação Nacional de História.

Os textos originais aqui traduzidos estão distribuídos em capítulos, ao início dos quais se encontram ensaios introdutórios preparados pelos colaboradores brasileiros. Esses ensaios permitem ao leitor situar o autor traduzido, o contexto de sua obra, a relevância de sua historiografia e a natureza do texto selecionado para tradução. Certamente esta antologia não esgota as questões relevantes e requer um olhar tanto retrospectivo quanto prospectivo. Assim, o grupo de pesquisa tem a intenção de dar prosseguimento ao trabalho de coligir outros autores e textos incontornáveis na história da historiografia, que se articulem com a presente coletânea. Procurou-se evitar uma mera justaposição sequencial de textos, recorrendo à reflexão crítica dos ensaios. Tal reflexão é sempre necessária, na medida em que a consideração da relevância de tais textos parte de uma perspectiva contemporânea de informação, à maneira aristotélica, da pesquisa e de formação de pesquisadores. Por essa razão o tema não se esgota, mas se reflete na escolha dos textos aqui traduzidos e nas análises que constam dos ensaios que os acompanham.

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Os autores, ao cabo desta jornada, expressam seus agradecimentos ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e às suas universidades pelo apoio que lhes foi assegurado.



Notas

1 François Châtelet, La Naissance de l’histoire: la formation de la pensée historienne em Grèce, Paris, Éditions de Minuit, 1962.

2 Cf. Estevão C. de Rezende Martins, “O caráter relacional do conhecimento histórico”, em Cléria Botelho da Costa (org.), Um passeio com Clio, Brasília, Paralelo 15, 2002, pp. 11-25.

Bibliografia

Châtelet, François. La naissance de l’histoire: la formation de la pensée historienne em Grèce. Paris: Éditions de Minuit, 1962.

Iggers, Georg G.; Wang, Edward Q.; Mukherjee, Supriya. A Global History of Modern ­Historiography. Harlow (Inglaterra): Pearson-Longmann, 2008.

Martins, Estevão C. de Rezende. O caráter relacional do conhecimento histórico. In: Costa, Cléria Botelho da (org.). Um passeio com Clio. Brasília: Paralelo 15, 2002, pp. 11-25.

Mazower, Mark. Continente sombrio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 [ed. org. 1998].

* Introdução da obra A hustória pensada, organizada por Estevão de Rezende Martins (Org.)

2 thoughts on ““A história pensada”: O renascimento da História como ciência*

  1. Foi muito interessante tudo que li e de bom proveito para meus estudos, o autor está de parabéns.Mas o que eu gostaria de saber um pouco mais é em releção como a História se consolidou Ciência,ficarei muito grata pela informação.

  2. Foi muito interessante tudo que li e de bom proveito para meus estudos, o autor está de parabéns.Mas o que eu gostaria de saber um pouco mais é em releção como a História se consolidou Ciência,ficarei muito grata pela informação.

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