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8 mitos sobre alfabetização

Independentemente da sua abordagem em sala de aula, listamos as ideias que ainda persistem e que precisam ser abandonadas

Alfabetização é um dos temas mais polêmicos da Educação – no Brasil e no mundo. É um caso clássico de como brigas teóricas se refletem nas salas de aula. Nos Estados Unidos, por exemplo, são famosas as Reading Wars (Guerras da leitura, em tradução livre), disputas entre pensadores para determinar qual seria a melhor maneira de alfabetizar. No Brasil, vivemos algo parecido, na briga entre os métodos fônicos – baseados na decodificação – e a abordagem construtivista. “Durante décadas, ficamos discutindo qual é o melhor método para alfabetizar. Não se trata do método”, diz Magda Soares, uma das maiores autoridades no assunto.

Magda, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), tentou emergir nesse cenário como uma apaziguadora. “Trata-se de envergar a vara na direção que me parece cientificamente correta”, afirma. Sua perspectiva tenta conciliar a reflexão sobre o sistema alfabético, propondo que as crianças passem por momentos para aprender as relações entre letras e sons, com a inserção dos alunos no mundo letrado, a que ela chama de letramento. A visão da especialista não vem sem polêmicas: o grupo de pesquisadores que defende essa linha ainda vive em debates com os outros especialistas.

Há dez anos, Magda coordena o Núcleo de Alfabetização e Letramento no município de Lagoa Santa, a 35 quilômetros de Belo Horizonte. Ali, ela atua diretamente com a formação dos professores que trabalham na rede. Parte da prática está registrada em uma série de vídeos produzida pela Atta Mídia e Educação com financiamento da Fundação Lemann – mantenedora de NOVA ESCOLA -, e que agora está disponível em bit.ly/Alfaletrar.

A seguir, esclarecemos oito mitos sobre alfabetização que são desconstruídos na série de vídeo e podem atrapalhar os professores – qualquer que seja a abordagem que ele prefira seguir. Mais abaixo, Magda fala sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a presença do ensino da escrita na Educação Infantil.

  1. As crianças não devem acessar livros até que aprendam a ler
    Não é porque os pequenos não dominam a leitura que não devam ter acesso a livros desde cedo. “Muitos professores sonegam o livro às crianças. Mas é importante que elas estejam expostas a um ambiente alfabetizador”, avalia. Magda diz que o coração do projeto que coordena em Lagoa Santa são as bibliotecas infantis. Mais do que tarefas mecânicas, de cópia e repetição de sílabas, é necessário que os alunos reflitam sobre o sistema de escrita com base em textos que são atraentes para eles, como parlendas, jogos e também livros infantis.
  2. O alfabetizador não precisa de conhecimentos específicos
    Alfabetizar exige conhecimentos específicos sobre o processo e também sensibilidade sobre os avanços e as dificuldades da criança para saber como aplicá-los. “Se o papel do professor é orientar o aluno para que ele se aproprie de um objeto, o educador tem de saber como este se dá não só em termos de conteúdo mas do processo. Isso exige conhecimentos de várias ciências, como a Psicologia, a Linguística e a Pedagogia”, afirma Magda. Parte desses conceitos são ensinados durante a formação inicial, mas eles por si sós não são suficientes. A maioria dos conhecimentos mais atuais demora para chegar às universidades e mais ainda às salas de aula. O alfabetizador deve buscar novas fontes de conhecimento vindos de fontes teóricas e, sobretudo, refletir sobre a própria prática.
  3. Só existe um método eficiente de alfabetização
    Não há evidências de que haja uma única maneira para ensinar leitura e escrita. Mais importante do que pensar em uma sequência de atividades fixa para seguir é dominar as fundamentações teóricas e saber traduzi-las em uma prática adequada à realidade da sua turma. “Cada abordagem de alfabetização tem seu pedacinho de verdade, mas nenhuma delas contém a verdade absoluta. Toda a verdade está no processo e no professor que alfabetiza, entendendo com clareza o processo e sabendo orientá-lo”, explica Magda.
  4. Todas as crianças passam pelas mesmas fases
    O desenvolvimento de cada criança é único e é exatamente por isso que o professor precisa de sensibilidade no olhar e boa formação para entender o que acontece com o aluno. “Eles passam fases bem definidas de aprendizagem, mas isso não significa que todos percorram todas as fases de maneira uniforme. O processo é dinâmico, ocorrem saltos e as crianças estão sempre em transição entre fases”, considera a especialista. Não dá para esperar que uma mesma atividade faça com que todos os alunos saiam de uma hipótese de escrita e cheguem a outra. Por isso, é necessário fazer diagnósticos e replanejar constantemente.
  5. As crianças aprendem a ler e a escrever sozinhas
    Apenas dar oportunidade para que a criança, por ela mesma, descubra o sistema de escrita não é suficiente para que ela o compreenda e aprenda como utilizá-lo. “As pessoas não se dão conta de como é difícil para uma criança aprender um sistema de representação tão abstrato e complexo como o alfabético”, diz a especialista. Elas constroem o conhecimento sobre a língua escrita à medida que convivem com ela – em livros, mas também em outros conteúdos, como listas de nomes da sala, placas e sinais na escola e na cidade, e assim por diante – e são orientadas nesse processo.
  6. As crianças só devem escrever depois que dominarem o sistema alfabético
    O ideal é que as crianças explorem a escrita livremente e, com base nisso, o professor diagnostique a hipótese de escrita e planeje seu trabalho. Elas também podem refletir sobre os contextos em que a escrita é utilizada mesmo antes de estarem plenamente alfabetizadas. “Os textos trabalhados em sala não podem ser produzidos artificialmente – aquela coisa antiga do ‘Eva viu a uva’ – só para aprender a ler”, considera Magda.
  7. Deve-se corrigir os alunos sempre que escreverem errado
    É preciso fazer intervenções de acordo com as hipóteses de apropriação do sistema de escrita de cada aluno e incentivar a reflexão de cada estudante sobre suas próprias respostas, mas sempre respeitando o processo de desenvolvimento da criança e considerando todo seu percurso. “É preciso ajudar a ver quais hipóteses que ela faz não funcionam, como ela avança e como as reestrutura”, diz Magda. Os erros precisam ser corrigidos de acordo com a apropriação do objeto de conhecimento – o que significa que eles nem sempre serão corrigidos no momento em que ocorrem.
  8. Relacionar letras e desenhos ajuda a memorizar o alfabeto
    Muitos livros com alfabeto ou mesmo alfabetos de parede em sala trazem letras que fazem referências a objetos e animais. O “S” é transformado numa serpente, o “B” vira uma borboleta e o “O” um ovo. “As crianças devem perceber que escrever e desenhar são coisas diferentes. O salto desse desenvolvimento é elas descobrirem que se escreve os sons da palavra e não aquilo que ela representa”, pontua Magda. Forçar uma relação entre as formas dos desenhos e as letras atrapalha a descoberta. Os alfabetos podem até conter referências de animais e outras palavras – como os nomes dos alunos – desde que sejam escritos com a letra que ilustram.

TRÊS PERGUNTAS PARA MAGDA SOARES

Professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Magda Soares

Qual a sua opinião sobre a atual versão da BNCC, que adianta a alfabetização do 3º para o 2º ano?
Isso é uma discussão sem sentido. A alfabetização é um processo contínuo, que começa com o convívio com a língua escrita fora da escola. Essa fixação de ser no 2º ou 3º ano é apenas uma forma de colocar uma expectativa nos professores, nas escolas, nos pais, de modo que o processo se faça de alguma forma. No 1º ano, no máximo no 2º, a criança já terá se apropriado do alfabético, sobretudo se o processo foi orientado desde a Educação Infantil. Se você quer chamar isso de alfabetização, tudo bem. Mas é uma visão restrita. É importante que a criança aprenda a ler e a escrever textos com autonomia. Isso acontece ao longo de toda a vida escolar.

Qual o papel da Educação Infantil nesse processo?
Muitos grupos acreditam que essa etapa não deve chegar nem perto da alfabetização. Nas primeiras versões da BNCC mesmo não havia nada sobre o tema. E isso vai contra o que já sabemos sobre as possibilidades e os interesses dos pequenos de se aproximar da língua escrita. As crianças já estão inseridas em um mundo letrado desde que nascem, mesmo as das camadas mais populares.

Na pré-escola, existem crianças que já descobriram o que são as letras e que elas representam sons. Também há outras que ainda não, que nem sabem pegar no lápis. Tudo depende dos contextos cultural, social e familiar. É preciso partir do ponto que ela está, dar continuidade e procurar que a turma toda chegue aproximadamente a um mesmo nível para que avancem. Esse processo continua no Ensino Fundamental. Não podemos deixar tudo para o início do Fundamental justamente para não sobrecarregar um único ano com todas as responsabilidades.

Se você pudesse deixar um recado para os professores alfabetizadores, qual seria?
O mais importante é que o professor goste de alfabetizar e tenha entusiasmo em levar a criança a aprender. Também é preciso que ele tenha conhecimento sobre o processo. Os alfabetizadores precisam se apropriar da psicologia cognitiva, da fonologia, da sociolinguística, que estão estudando isso. O bom alfabetizador entende os processos de aprendizagem e, portanto, sabe orientar de forma adequada. Ao mesmo tempo gosta de fazer esse trabalho e possui uma boa interação com as crianças.


Fonte: Nova Escola, por Wellington Soares, Patrick Cassimiro e Laís Semis.