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Religião e Poder: Uma relação perigosa | Jaime Pinsky

Para muita gente, a religião é um conjunto de preceitos respeitados e seguidos com a finalidade de garantir uma vida futura em lugar mais agradável do que este planeta cada vez mais quente. Para outros, é uma relação estabelecida com a divindade, qualquer que seja o nome a ela atribuído. Mas aqui estamos falando de religião como organização.

Só que a religião não cria uma organização qualquer: as “verdades” com as quais trabalha não decorrem de raciocínio lógico, mas sim de dogmas estabelecidos por Deus ou seu suposto representante na Terra no poder, ou pelo menos na religião vinculada ao poder, em nome de verdades como estrutura de poder, estabelecida por um grupo de pessoas em nome de verdades apresentadas como indiscutíveis.

Graças aos que acreditam nessas verdades, o grupo dirigente se torna poderoso e sozinho (ou em aliança com dirigentes governamentais) e interfere em setores da vida de cidadãos que sequer pertencem àquela crença. E é aí que reside o perigo: a religião trabalha com verdades reveladas, não demonstradas, não frutos da razão.

Sendo promulgadas por Deus (ou por algum deus), ou por algum seu suposto representante ou intérprete, essas verdades não podem sequer ser discutidas, quanto mais contestadas por simples mortais. Além disso, cabe a todo bom militante de uma religião não apenas segui-la, obedecendo aos dogmas de fé, como ainda buscar (em diferente medida, dependendo de cada religião) convencer os outros. Com palavras, se possível. Pela força, se necessário.

Em alguns momentos da História até que essa obediência desempenhou papel positivo e agregador. Há cinco mil anos, na Mesopotâmia, os sacerdotes conseguiram juntar dezenas de milhares de pessoas para atuar em conjunto e domar rios, construir canais, levantar edifícios e criar as primeiras cidades da humanidade, graças ao culto comum a deuses e aos reis. De modo mais dramático, o mesmo processo ocorreu no Egito faraônico, onde os dirigentes se apresentavam como sendo os próprios deuses.

Sem um trabalho coletivo nunca uma civilização tão importante e original teria sido levantada em pleno deserto. O Nilo, no Egito, assim como o Tigre e o Eufrates, na Mesopotâmia, irrigavam as margens e possibilitavam a atividade agrícola, mas os territórios eram pobres em madeira, pedra e metais. O trabalho coletivo, sob a organização de um poder central e a inspiração de divindades poderosas, transformou aglomerações incipientes em núcleos urbanos e impérios grandiosos, com comércio ativo, intercâmbio cultural, escrita e contabilidade, além de arte muito desenvolvida.

Em outros momentos da História, política e religião estiveram juntas. Diferentes povos da Antiguidade, tanto a oriental quanto a clássica, tiveram seus próprios deuses, e os detentores do poder recorriam a eles para arrecadar tributos. Afinal, pedir dinheiro para o templo e não para o luxo dos governantes sempre soou mais simpático e tem sido um estratagema amplamente utilizado em todos os continentes, em toda a História. Mesmo com os hebreus, após a construção do Templo de Jerusalém (há cerca de 3000 anos), reis se uniram aos sacerdotes para arrecadar impostos.

Graças aos profetas, particularmente os chamados profetas sociais (como Amós e Isaias), a religião passaria de simples monolatria (religião que segue um deus, mas aceita a existência de outros deuses) a monoteísmo ético, ou seja, a crença em um único deus que exige um comportamento reto por parte dos seus seguidores. Não por acaso o monoteísmo profético se deu fora do templo, não dentro dele, fora da estrutura de poder e até contestando essa estrutura. O monoteísmo ético se tornaria a base do cristianismo e do islã, que, por sua vez, também fizeram alianças táticas e estratégicas com o poder político em muitas ocasiões.

O cristianismo, durante séculos, não se configurava como uma religião própria, mas como uma espécie de linha alternativa do judaísmo (sua fonte foi a vertente essênica, como indicam os Pergaminhos do Mar Morto). Escritos dos romanos costumavam designar as duas religiões como sendo uma só. Aos poucos, o cristianismo ganharia autonomia, particularmente após o trabalho hábil de Paulo de Tarso, homem de vasta cultura helenística, que adequou práticas religiosas aos costumes do mundo greco-romano, como demostra Joseph Klausner em seu livro From Jesus to Paul.  Graças a isso, ao contrário do judaísmo que continua uma religião específica de um povo, o cristianismo ganha um caráter universal e está pronto para conquistar o mundo.

Ao liberar a prática do cristianismo e aceitá-lo, o imperador romano Constantino permitiu que ele se expandisse rapidamente. Enquanto se expandia, ganhava uma estrutura burocrática emprestada de Roma, com forte hierarquia. Deixou de ser (apenas) a religião dos pobres e escravos e se transformou em uma potência à qual os reis e os senhores feudais precisavam recorrer para legitimar seu poder. Na Idade Média, bispos e cardeais entronizam reis. A Igreja se apresenta como única fonte de saber (já que se diz representante de Deus na Terra). Particularmente, as mulheres que detêm conhecimentos práticos, como, por exemplo, o das plantas medicinais, são reprimidas fortemente, consideradas bruxas. A alegação: “O saber que não vem de Deus, via clero, só pode se originar do Demônio”.

Agora o cristianismo legisla sobre tudo, não apenas sobre o mundo da fé. São da sua conta as regras de comportamento, os torneios, as práticas sexuais, os direitos dos proprietários de terras, as fórmulas dos chás curativos, os dias de trabalho e os de descanso, e todo o resto. E em todo o resto estão muitos textos clássicos, gregos e romanos, que não deveriam ser divulgados. No máximo, podiam ser copiados nos mosteiros (e nem todos). Poder religioso e poder político caminham juntos agora.

Essa aliança resiste ao fim do sistema feudal e da Idade Média, como podemos verificar na França monárquica e, mais ainda, na Península Ibérica, onde a Inquisição prejudicou o desenvolvimento do capitalismo comercial, como explica Antônio José Saraiva no seu belíssimo livro Inquisição e cristãos-novos. Esta aliança custaria aos ibéricos a perda da hegemonia – que chegaram a ter no Atlântico e nas Américas – para os holandeses. Estes não misturavam religião e poder.

Com o Iluminismo e as chamadas revoluções burguesas, particularmente a Revolução Francesa, implanta-se o Estado Nacional moderno com a explícita separação entre Estado e religião. Isso implica liberdade de culto, mas implica também a não interferência entre as esferas Fé e Poder. Porém, o conceito ideal só foi posto em prática em poucos lugares e a aliança entre o poder político e o religioso continuou. Ela ocorre na Rússia atual, que considera o sanguinário Nicolau I e sua família (mortos pelos bolcheviques por ocasião da Revolução de 1917) santos da Igreja Ortodoxa.

Ela ocorre em países islâmicos, alguns dos quais sequer admitem a construção de templos de outras denominações em seu território. Em países como o Irã, onde os aiatolás ainda são a mais alta instância de poder e as mulheres perderam as conquistas que haviam obtido ao longo do século XX. E ocorre até em muitos países onde partidos vinculados a diferentes religiões estabelecem alianças eticamente duvidosas em busca de benefícios que nada têm a ver com a esfera espiritual. Para o bem do Estado e da própria religião, o melhor é evitar relações incestuosas entre os dois.

Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense de 21/01/2019, página 11 - Opinião.


Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense de 21/01/2019, página 11 – Opinião.
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto. [email protected]