Independentemente da sua abordagem em sala de aula, listamos as ideias que ainda persistem e que precisam ser abandonadas
Magda, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), tentou emergir nesse cenário como uma apaziguadora. “Trata-se de envergar a vara na direção que me parece cientificamente correta”, afirma. Sua perspectiva tenta conciliar a reflexão sobre o sistema alfabético, propondo que as crianças passem por momentos para aprender as relações entre letras e sons, com a inserção dos alunos no mundo letrado, a que ela chama de letramento. A visão da especialista não vem sem polêmicas: o grupo de pesquisadores que defende essa linha ainda vive em debates com os outros especialistas.
Há dez anos, Magda coordena o Núcleo de Alfabetização e Letramento no município de Lagoa Santa, a 35 quilômetros de Belo Horizonte. Ali, ela atua diretamente com a formação dos professores que trabalham na rede. Parte da prática está registrada em uma série de vídeos produzida pela Atta Mídia e Educação com financiamento da Fundação Lemann – mantenedora de NOVA ESCOLA -, e que agora está disponível em bit.ly/Alfaletrar.
A seguir, esclarecemos oito mitos sobre alfabetização que são desconstruídos na série de vídeo e podem atrapalhar os professores – qualquer que seja a abordagem que ele prefira seguir. Mais abaixo, Magda fala sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a presença do ensino da escrita na Educação Infantil.
- As crianças não devem acessar livros até que aprendam a ler
Não é porque os pequenos não dominam a leitura que não devam ter acesso a livros desde cedo. “Muitos professores sonegam o livro às crianças. Mas é importante que elas estejam expostas a um ambiente alfabetizador”, avalia. Magda diz que o coração do projeto que coordena em Lagoa Santa são as bibliotecas infantis. Mais do que tarefas mecânicas, de cópia e repetição de sílabas, é necessário que os alunos reflitam sobre o sistema de escrita com base em textos que são atraentes para eles, como parlendas, jogos e também livros infantis. - O alfabetizador não precisa de conhecimentos específicos
Alfabetizar exige conhecimentos específicos sobre o processo e também sensibilidade sobre os avanços e as dificuldades da criança para saber como aplicá-los. “Se o papel do professor é orientar o aluno para que ele se aproprie de um objeto, o educador tem de saber como este se dá não só em termos de conteúdo mas do processo. Isso exige conhecimentos de várias ciências, como a Psicologia, a Linguística e a Pedagogia”, afirma Magda. Parte desses conceitos são ensinados durante a formação inicial, mas eles por si sós não são suficientes. A maioria dos conhecimentos mais atuais demora para chegar às universidades e mais ainda às salas de aula. O alfabetizador deve buscar novas fontes de conhecimento vindos de fontes teóricas e, sobretudo, refletir sobre a própria prática. - Só existe um método eficiente de alfabetização
Não há evidências de que haja uma única maneira para ensinar leitura e escrita. Mais importante do que pensar em uma sequência de atividades fixa para seguir é dominar as fundamentações teóricas e saber traduzi-las em uma prática adequada à realidade da sua turma. “Cada abordagem de alfabetização tem seu pedacinho de verdade, mas nenhuma delas contém a verdade absoluta. Toda a verdade está no processo e no professor que alfabetiza, entendendo com clareza o processo e sabendo orientá-lo”, explica Magda. - Todas as crianças passam pelas mesmas fases
O desenvolvimento de cada criança é único e é exatamente por isso que o professor precisa de sensibilidade no olhar e boa formação para entender o que acontece com o aluno. “Eles passam fases bem definidas de aprendizagem, mas isso não significa que todos percorram todas as fases de maneira uniforme. O processo é dinâmico, ocorrem saltos e as crianças estão sempre em transição entre fases”, considera a especialista. Não dá para esperar que uma mesma atividade faça com que todos os alunos saiam de uma hipótese de escrita e cheguem a outra. Por isso, é necessário fazer diagnósticos e replanejar constantemente. - As crianças aprendem a ler e a escrever sozinhas
Apenas dar oportunidade para que a criança, por ela mesma, descubra o sistema de escrita não é suficiente para que ela o compreenda e aprenda como utilizá-lo. “As pessoas não se dão conta de como é difícil para uma criança aprender um sistema de representação tão abstrato e complexo como o alfabético”, diz a especialista. Elas constroem o conhecimento sobre a língua escrita à medida que convivem com ela – em livros, mas também em outros conteúdos, como listas de nomes da sala, placas e sinais na escola e na cidade, e assim por diante – e são orientadas nesse processo. - As crianças só devem escrever depois que dominarem o sistema alfabético
O ideal é que as crianças explorem a escrita livremente e, com base nisso, o professor diagnostique a hipótese de escrita e planeje seu trabalho. Elas também podem refletir sobre os contextos em que a escrita é utilizada mesmo antes de estarem plenamente alfabetizadas. “Os textos trabalhados em sala não podem ser produzidos artificialmente – aquela coisa antiga do ‘Eva viu a uva’ – só para aprender a ler”, considera Magda. - Deve-se corrigir os alunos sempre que escreverem errado
É preciso fazer intervenções de acordo com as hipóteses de apropriação do sistema de escrita de cada aluno e incentivar a reflexão de cada estudante sobre suas próprias respostas, mas sempre respeitando o processo de desenvolvimento da criança e considerando todo seu percurso. “É preciso ajudar a ver quais hipóteses que ela faz não funcionam, como ela avança e como as reestrutura”, diz Magda. Os erros precisam ser corrigidos de acordo com a apropriação do objeto de conhecimento – o que significa que eles nem sempre serão corrigidos no momento em que ocorrem. - Relacionar letras e desenhos ajuda a memorizar o alfabeto
Muitos livros com alfabeto ou mesmo alfabetos de parede em sala trazem letras que fazem referências a objetos e animais. O “S” é transformado numa serpente, o “B” vira uma borboleta e o “O” um ovo. “As crianças devem perceber que escrever e desenhar são coisas diferentes. O salto desse desenvolvimento é elas descobrirem que se escreve os sons da palavra e não aquilo que ela representa”, pontua Magda. Forçar uma relação entre as formas dos desenhos e as letras atrapalha a descoberta. Os alfabetos podem até conter referências de animais e outras palavras – como os nomes dos alunos – desde que sejam escritos com a letra que ilustram.
TRÊS PERGUNTAS PARA MAGDA SOARES
Professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Qual a sua opinião sobre a atual versão da BNCC, que adianta a alfabetização do 3º para o 2º ano?
Isso é uma discussão sem sentido. A alfabetização é um processo contínuo, que começa com o convívio com a língua escrita fora da escola. Essa fixação de ser no 2º ou 3º ano é apenas uma forma de colocar uma expectativa nos professores, nas escolas, nos pais, de modo que o processo se faça de alguma forma. No 1º ano, no máximo no 2º, a criança já terá se apropriado do alfabético, sobretudo se o processo foi orientado desde a Educação Infantil. Se você quer chamar isso de alfabetização, tudo bem. Mas é uma visão restrita. É importante que a criança aprenda a ler e a escrever textos com autonomia. Isso acontece ao longo de toda a vida escolar.
Qual o papel da Educação Infantil nesse processo?
Muitos grupos acreditam que essa etapa não deve chegar nem perto da alfabetização. Nas primeiras versões da BNCC mesmo não havia nada sobre o tema. E isso vai contra o que já sabemos sobre as possibilidades e os interesses dos pequenos de se aproximar da língua escrita. As crianças já estão inseridas em um mundo letrado desde que nascem, mesmo as das camadas mais populares.
Na pré-escola, existem crianças que já descobriram o que são as letras e que elas representam sons. Também há outras que ainda não, que nem sabem pegar no lápis. Tudo depende dos contextos cultural, social e familiar. É preciso partir do ponto que ela está, dar continuidade e procurar que a turma toda chegue aproximadamente a um mesmo nível para que avancem. Esse processo continua no Ensino Fundamental. Não podemos deixar tudo para o início do Fundamental justamente para não sobrecarregar um único ano com todas as responsabilidades.
Se você pudesse deixar um recado para os professores alfabetizadores, qual seria?
O mais importante é que o professor goste de alfabetizar e tenha entusiasmo em levar a criança a aprender. Também é preciso que ele tenha conhecimento sobre o processo. Os alfabetizadores precisam se apropriar da psicologia cognitiva, da fonologia, da sociolinguística, que estão estudando isso. O bom alfabetizador entende os processos de aprendizagem e, portanto, sabe orientar de forma adequada. Ao mesmo tempo gosta de fazer esse trabalho e possui uma boa interação com as crianças.
Fonte: Nova Escola, por Wellington Soares, Patrick Cassimiro e Laís Semis.