Viver em sociedade tem vantagens óbvias: se você vivesse sozinho, ou apenas com sua família, no meio do mato, não teria alguns confortos. Em um bom número de casas brasileiras basta abrir a torneira para ter água corrente, apertar a descarga e saber que os dejetos estão sendo levados para longe, apertar um botão e ter luz. Em muitos bairros de cidades brasileiras as ruas são asfaltadas, um selecionado número de calçadas é transitável, muitas escolas são frequentáveis, a segurança é razoável. Parques têm funcionários que, eventualmente, aparam a grama, o lixo é retirado por garis que trabalham em caminhões especializados, o transporte coletivo funciona, assim como outros tantos serviços. Em troca desses serviços o cidadão paga impostos e taxas e submete-se a regras, sejam elas escritas, ou convencionais.
Algumas regras sociais são consideradas tão fundamentais que chegam a constar de constituições. Por exemplo, qual língua deve-se falar? Em diferentes grupos nacionais convenciona-se falar uma língua própria (como os finlandeses, os lituanos, os israelenses, os húngaros, por exemplo, que têm línguas muito particulares), em outros emprestou-se línguas de povos colonizadores (como fizeram os brasileiros, os australianos, os argentinos, etc.). Em algumas nações a Justiça baseia-se no direito romano, em outras no direito consuetudinário. Em alguns países o trânsito flui do lado direito, em outros (como a Inglaterra e o Japão) utiliza-se o outro lado. O importante é estabelecer a regra e cumpri-la: sempre existirão defensores de destas ou daquelas.
Claro que alguns países levam as convenções muito a sério. Outros, nem tanto. Por exemplo, beber e dirigir pode? No Brasil não pode, só que pode. Explicando melhor (?): por lei, aqui não se pode ingerir nenhuma bebida alcoólica e depois sair dirigindo. Nada. Não há tolerância alguma, como em alguns lugares. Se você for pego… não acontece nada, uma vez que você não é obrigado a fazer o teste do bafômetro: uma regra de ouro que nossos ilustres legisladores estabeleceram é que ninguém é obrigado a produzir provas contra si próprio e como o motorista bebum produziria prova de sua condição de alcoólatra ao fazer teste do bafômetro, o camarada deixa de fazê-la. Em resumo, não pode beber e dirigir, só que pode. Entenderam? Ainda não? Vamos exemplificar. Se você está guiando seu pesado carro alemão, , às 2 da madrugada, entra derrapando em uma rua em que motociclistas que entregam alimentos encontram-se parados esperando por trabalho, e mata um ou dois garotos; se você não se dá sequer ao trabalho de chamar socorro. Se você é retido(a) no local até a chegada da Polícia. Se você é levado(a) à delegacia, ficando retido(a) por algumas horas. Se tudo isso acontecer, mesmo você não tendo chamado socorro, mesmo você estando em velocidade incompatível, mesmo você tendo matado pobres inocentes trabalhadores, mesmo você estando (muito provavelmente) alcoolizado… você não precisa comprovar sua situação etílica e, é claro, não ficaeá retida na delegacia, desde que consiga arranjar 20 mil reais em troca de sua liberdade. Assim funciona a coisa no Brasil. Afinal, o (a) motorista comprou o carro e, pelo visto, achou que, como dona dele, tinha o direito de guia-lo da forma que julgasse mais adequado. Talvez o coitado (ou a coitada) estivesse nervosa, irritada e seja muito razoável abusar um pouco da velocidade e do álcool (desculpe, não temos prova da condição etílica dela).
“Isso é meu, uso como quiser”. A provável frase da motorista me lembra um antigo vizinho que adorava dar festas em seu apartamento, festas regadas com muito vinho e som bem alto. Eu morava três andares abaixo dele, o que não impedia a manifestação nada sutil de seu formidável sistema sonoro, que ecoava em minha caixa torácica. Como se fossem um marca passo, os poderosos graves orientavam minha frequência cardíaca. Como não se tratava de ritmos lentos (muito pelo contrário) meu pobre coração saltava, desesperado, tentando acompanhar as batidas do sistema sonoro endoidecido. Eu temia que ele pulasse para fora do local em que se encontrava aninhado. Em uma reunião de condomínio, finalmente, consegui que se recomendasse moderação sonora, pelo menos depois das 22 horas. O simpático vizinho não se conformava. Afinal, dizia ele, “comprei e paguei meu apartamento, lá dentro posso fazer o que quiser”. Viver em sociedade, meu amigo, implica em direitos e deveres, é assinar, formal ou informalmente, um contrato social. Não violar o direito do outro é pedra basilar desse contrato. A não ser que estejamos vivendo em sociedades em que, embora todos sejam iguais, na prática alguns são “mais iguais”…
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.