Fechar

Tradições discursivas do português brasileiro | Vol. 7

Este volume 7 da série História do Português Brasileiro trata das Tradições Discursivas, focalizando a historicidade dos textos e da língua. Os trabalhos aqui reunidos estão agrupados em cinco grupos de escrituras:1 jornalísticas; publicitárias; administrativas, pessoais e de cunho religioso.

O primeiro capítulo, intitulado “O editorial de jornal: revisitando a trajetória de um gênero”, produzido por Valéria Severina Gomes e Aurea Zavam, tem como propósito investigar o percurso sócio-histórico do editorial como prática discursiva do jornalismo impresso, a fim de examinar a manutenção e/ou inovação de aspectos ligados tanto à localização no corpo jornal quanto à dimensão linguístico-discursiva, em exemplares dos séculos xix e xx coletados dos corpora do phpb. Foram analisados 80 (oitenta) editoriais, 20 de cada estado (Bahia, Ceará, Pernambuco e Rio de Janeiro), compreendendo os dois séculos. Com base em aspectos contextuais e linguístico-discursivos (Jucker, 2000), o estudo parte de uma matriz de traços constitutivos do editorial que serviu de base à análise empreendida. O trabalho apoia-se fundamentalmente no conceito de Tradição Discursiva (td), da romanística alemã, que acentua a historicidade dos textos, reconhecendo-lhes, segundo Kabatek (2006b), dois fatores definidores: evocação e repetição. Ao evocar, recordar o passado, uma td, que se realiza no presente, inevitavelmente se repete, senão em sua totalidade, pelo menos em partes. A td prevê a repetição desde uma forma textual até uma maneira particular de escrever e falar. São, pois, os traços de repetição que permitiram reconhecer a permanência de determinados aspectos, assim como identificar a mudança de outros em diferentes dimensões, incluindo a linguística na trajetória do gênero editorial.

O capítulo “A notícia de jornal entre conservação e inovação: Tradições Discursivas e história da língua” trata do gênero noticioso. Os autores Cléber Ataíde e Tarcísia Travassos mostram que a notícia é considerada um gênero informativo porque tende a expor fatos e acontecimentos da sociedade em geral. Para elaboração desse gênero, os manuais de redação jornalística ditam que o texto precisa apresentar, por exemplo, uma estrutura textual do tipo narrativa, com verbos no passado, em terceira pessoa e que respondem às questões determinadas: o quê? quem? quando? onde? e por que? Sabe-se, porém, que essas características formais não se aplicam a todos os textos noticiosos pertencentes à mídia impressa e também não são modelos fixos da composição da notícia. No período do surgimento da impressa no Brasil, no início do século xix, por exemplo, as notícias eram praticamente notas e, muitas vezes, se assemelhavam à função típica dos anúncios e avisos do cotidiano. A partir do conceito de Tradição Discursiva que postula o princípio de que os gêneros podem apresentar determinadas regularidades que nos remetem a formas textuais anteriormente produzidas, este capítulo objetiva investigar que mudanças podem ser apontadas na estrutura da notícia jornalística da mídia impressa. Para a investigação, os autores partem da análise de 70 textos noticiosos do jornal pernambucano Diário de Pernambuco. Também utilizam algumas amostras dos jornais Brado Conservador, do Rio Grande do Norte, e dos jornais A Província de São Paulo e Correio Paulista, de São Paulo, coletados e editados segundo as normas filológicas de textos impressos pela equipe do projeto Para a História do Português do Brasil (phpb). A pesquisa centra-se em dois aspectos do gênero em destaque, a saber: a construção do título e as estratégias composicionais na textualização da notícia.

No capítulo “Tradição, persuasão, hegemonia: o noticiário sobre as eleições em perspectiva diacrônica”, Fábio Fernando Lima apresenta os resultados de um estudo que se propõe a investigar, analisar e descrever as estruturas responsáveis pelo estabelecimento das relações interpessoais e as intersecções destas com a persuasão no noticiário dos jornais paulistas desde o final do século xix até o início do século xxi, estabelecendo, como recorte, as publicações relacionadas à temática das eleições e observando, nesse contexto, a manifestação de ideologias e a busca pelo estabelecimento de determinados consensos. Paralelamente, levando em consideração a diacronia do gênero textual sob análise, busca descrever sua evolução, regularidades e transformações, apresentando, assim, as tradições discursivas do noticiário nos jornais paulistas.

O capítulo “Estrutura retórico-teleológica e negociação intersubjetiva em editoriais da imprensa de bairro”, escrito por Paulo Roberto Gonçalves-Segundo, objetiva depreender padrões negociativos e retórico-teleológicos de estruturação de editoriais da imprensa de bairro, a partir do exame detalhado de textos publicados em periódicos paulistas, cariocas e curitibanos em um período de tempo que vai da década de 1970 até o ano de 2013, o que recobre, portanto, dois períodos sócio-históricos distintos, cujas características se mostram relevantes na configuração do gênero: o período totalitário e o período democrático. Tomando como base a perspectiva sistêmico-funcional, com destaque aos subsistemas de atitude e de envolvimento, ligados à metafunção interpessoal, e o conceito de Tradições Discursivas, foi possível depreender, por um lado, um conjunto de cinco posturas – de condenação, de repúdio, de análise, de reconhecimento e de louvor –, marcadas por distinções na distribuição de valores atitudinais e, por outro, um total de cinco vínculos – exclusivista, intimista, de identificação, de proximidade e de distanciamento –, caracterizados pela predominância de recursos de envolvimento ligados à captação ou à vinculação e por determinados tipos de coletivização. Tais padrões encontraram-se instanciados de forma não biunívoca em relação aos quatro modelos retórico-teleológicos dominantes no gênero – o exortativo, o crítico, o informativo e o exaltativo – e apresentaram sensibilidade a fatores sócio-históricos e sociocomunicativos, além de relações de metarredundância entre si.

O capítulo “História da carta de leitor: sobre aspectos composicionais, conservação e dinamismo”, produzido por Thiago Trindade Matias, tem por iniciativa reconstruir a história do gênero carta de leitor, por meio de uma análise discursivo-textual do gênero a fim levantar características internas e identificar o que mudou ou permaneceu no uso/circulação e constituição do gênero, desde o seu surgimento até o século xx. Analisam-se nas cartas de leitor, à luz do paradigma da Tradição Discursiva, componentes caracterizadores da composição do gênero e a função sociodiscursiva por ela desempenhada. Verificou-se que a carta de leitor no nível das tradições discursivas oscilou entre convenção e a inovação, entre conservadorismo e dinamismo (Simões e Kewitz, 2009). Esse trabalho contribui para a reconstrução da sócio-história do português brasileiro (pb), ao resgatar usos e características linguísticas de tempos passados para comprovar as variações ou mudanças pelas quais passaram os textos da língua portuguesa.

O capítulo “Práticas histórico-discursivas na seção ‘annuncios’ de jornais no Brasil do século xix”, escrito por Ana Cristina de Sousa Aldrigue e Roseane Batista Feitosa Nicolau, tem o objetivo de analisar as práticas discursivas presentes na seção “Annuncios” do século xix de várias localidades do Brasil, observando seus aspectos linguísticos e histórico-discursivos. O estudo adota a concepção de texto na perspectiva da Tradição Discursiva (Oesterreicher, 1998; Kabatek, 2006a; Koch, 2008) por considerar, na compreensão do funcionamento do texto, os fatores sócio-históricos que o envolvem. Os anúncios selecionados apresentam as seguintes temáticas: venda e aluguel, cobrança e notícias gerais, e foram coletados da seção “Annuncios” dos jornais de Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Paraná, século xix – organizados e publicados pelas professoras Guedes e Berlinck (2000) –, e dos jornais da Paraíba – organizados e publicados pelas professoras Nicolau e Aldrigue (2009). Por meio das ideias de Bakhtin e de seu Círculo, observam-se as práticas histórico-discursivas presentes nos textos da seção “Annuncios”, o tratamento dado ao tema, o intuito do locutor em função do seu papel social e a forma composicional dos gêneros presentes. Esses fatores, interligados, vão particularizando os textos presentes na seção “Annuncios” como modelos textuais, como tradições que, conjuntamente com as formas linguísticas, dão condição ao exercício da função enunciativa de práticas discursivas.

O capítulo “Tradições Discursivas: uma análise dos anúncios de emprego publicados em jornais brasileiros”, elaborado por Kelly Cristina de Oliveira, objetiva analisar a constituição do gênero discursivo anúncio de emprego, da segunda metade do século xix, numa perspectiva diacrônico-textual. Para isso, considera as condições histórico-sociais em que foram produzidos. Outrossim, serão observados os critérios subjetivos utilizados para moralizar a mão de obra trabalhadora, bem como o uso de exigências fenotípicas em detrimento de exigências apenas profissionais, naturalizando e perpetuando o racismo. Utiliza o arcabouço teórico da Análise Crítica do Discurso de Fairclough (2003), que entende o discurso, dentre outros aspectos, como modo de ação, representação e identificação dos sujeitos sociais, funcionando nas práticas sociais, capaz de reproduzi-las e modificá-las.

No capítulo “A escrita burocrática colonial: cartas oficiais dos séculos xviii e xix”, Maria Cristina de Assis mostra que a leitura de cartas oficiais dos séculos xviii e xix revela um grau variado de habilidade na redação de textos administrativos. Esse capítulo tem o objetivo de caracterizar a linguagem de cartas oficiais produzidas em diferentes regiões brasileiras, entre o período de 1700 a 1800, observando os fenômenos linguísticos sob uma perspectiva histórico-textual, com base nos níveis de análise linguística propostos por Oesterreicher (1994) e Stoll (1996), a partir de Coseriu (1979). Os manuscritos integram o corpus diacrônico do phpb, organizado por diversos pesquisadores. Alguns documentos são redigidos de acordo com os modelos produzidos na metrópole, outros trazem passagens que denotam pouca experiência no manejo da escrita por parte de seus autores.

No capítulo “Os livros de família pernambucanos do século xix: o aporte das escrituras pessoais dos autores semicultos nordestinos para a pesquisa da história do português brasileiro”, Konstanze Jungbluth analisa manuscritos escritos por pernambucanos semicultos do século xix, a fim de buscar traços da oralidade do português brasileiro de tempos passados presentes na escrita. Para isso, selecionou como objeto de estudo quatro livros de famílias pernambucanos arquivados na Fundação Gilberto Freyre (Recife). Com apoio no conceito de Tradições Discursivas, aplicada no âmbito dos estudos históricos do português brasileiro, apresenta uma descrição do gênero textual livros de família, a partir da comparação desse gênero em quatro línguas românicas diferentes (italiano, catalão, espanhol e português brasileiro). Nesse sentido, considerou a prática de escrita e de leitura no seu contexto histórico-social e as temáticas tratadas nos manuscritos analisados para, então, desdobrar os traços dos livros de família pernambucanos do século xix. Na análise dos livros de família pernambucanos, a autora explorou a estrutura macro e micro desses textos, a saber, os aspectos lexicais e gramaticais, a variação lexical, a variação morfossintática, os sintagmas preposicionais e a ordem de palavras.

O último capítulo, “O bendito em manuscritos religiosos populares da primeira metade do século xx ao início do século xxi”, de autoria de Lucrécio Araújo de Sá Júnior, tem como objetivo analisar o gênero bendito, por ser um tipo de canto que compõe os ritos religiosos populares tais como novenas, procissões e folias. A partir da perspectiva das Tradições Discursivas, o autor busca observar as permanências e mudanças ocorridas nas sequências discursivas da estrutura formal dos textos. Para isso, a perspectiva teórica fundamenta-se nas ideias de Coseriu (1979), Oesterreicher (2002), Zumthor (1997, 2000) e Kabatek (2006). Para esses teóricos, os traços de mudança e de permanência observados na trajetória de um texto apontam para os traços de mudança e de permanência no funcionamento da língua. Em consonância com essa ideia, é preciso salientar que nos benditos há uma variação nas sequências discursivas do texto e que essa variação é dada pela fusão de outros gêneros da tradição religiosa. Tais transformações ultrapassam os elementos puramente linguísticos e são condicionadas pelo contexto externo. Considerando que o canto popular religioso está ativamente constituindo ou alimentando a memória e o imaginário da sociedade, as relações entre práticas discursivas, entre textos/discursos, são o que denominamos de interdiscurso, o qual é apontado para a produtividade dos textos. A variação na sequência discursiva dos benditos revela que os autores desses enunciados se apropriaram de diversas vozes sociais, transformaram textos anteriores reestruturando-os para gerar novos textos.

Nota: 1  As pesquisas desenvolvidas nos terceiro, quarto e sétimo capítulos estão vinculadas ao Projeto História do Português Paulista II, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), conforme o Processo n. 11/51787-5. Para esta publicação contamos também com o auxílio da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.


Maria Lúcia C. V. O. Andrade é professora de Língua Portuguesa, na Universidade de São Paulo (USP) desde 1992. Doutorou-se em Semiótica e Linguística pela USP. Desenvolve trabalhos na área de Análise da Conversação, Linguística Textual e Teorias do Texto. De 2006 a 2011 foi coordenadora do Projeto Temático de Equipe – Projeto Caipira, no subgrupo “Tradições discursivas: constituição e mudança dos gêneros discursivos numa perspectiva diacrônica”. Desde 2012 é coordenadora do Projeto Temático de Equipe – Projeto Caipira II, no subgrupo “Gêneros jornalísticos impressos: historicidade, constituição e mudança em uma perspectiva crítico-discursiva”. É coautora do livro Gramática do português culto falado no Brasil – vol. I: a construção do texto falado, também publicado pela Contexto.

Valéria Severina Gomes graduou-se em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestrado e doutorado em Linguística pela mesma universidade (2007). Atualmente é professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Linguística de Texto, Linguística Aplicada e Linguística Sócio-Histórica, atuando principalmente com pesquisas sobre temas relacionados ao ensino da língua(gem), às tradições discursivas e aos gêneros textuais; membro do grupo de pesquisa Tradições Discursivas do Ceará (Tradice); membro do grupo de pesquisa Laboratório de Edição e Documentação Linguística de Pernambuco (Ledoc) e coordenadora regional, em Pernambuco, do Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB); presidente do Grupo de Estudos Linguísticos e Literários do Nordeste (Gelne), no biênio 2014-2016; professora colaboradora do Profletras da Universidade de Pernambuco (UPE).