Fechar

Só a ciência nos salva | Jaime Pinsky

pandemia de Covid-19, no meio de tanta coisa ruim, ao menos trouxe de volta a esperança na ciência. E isto não é pouco. Ao contrário das verdades absolutas, supostamente reveladas por uma entidade superior, a ciência assume que não detém o monopólio das certezas indiscutíveis; aceita, modestamente, que suas verdades têm historicidade, ou seja, podem (e devem) ser modificadas com o tempo.

Além disso, a ciência não é uma construção pessoal. Nenhum cientista faz algo sozinho, ele apenas acrescenta um tijolo no grande edifício do conhecimento científico. Ao contrário das verdades ditadas pelas divindades (que são dogmáticas, por definição), as científicas podem ser objeto de controvérsia.

Já “do outro lado” tem muita gente com dificuldade para lidar com verdades que não sejam definitivas, indiscutíveis. Há, até, os que se dispõem a degolar pessoas que apenas questionaram seus dogmas, como ocorreu recentemente na França. Não seria errado dizer que a natureza da verdade científica é democrática, socialmente construída, mutável; enquanto a verdade religiosa é autoritária, definitiva, imutável.

Não deveria nos surpreender, portanto, que alguns quisessem que a ciência encontrasse uma resposta imediata para a pandemia, já que suas orações não resolviam. Queriam que a ciência virasse mesmo uma espécie de religião, que o cientista virasse um deus, que a água se transformasse não só em vinho, mas em um Borgonha ou um Barolo dos melhores. Não há ciência capaz de realizar esse tipo de milagre…

A ciência caminha dialeticamente, com avanços e recuos, explora possibilidades, realiza experiências que “quase” dão certo, até que se encontre a solução para o problema.

Em ciência, tem valor tanto aquele que encontrou a resposta como os demais, que apenas tentaram achar o caminho certo. As vacinas que estão chegando à reta final não resultam unicamente de experiências felizes, mas também de numerosas tentativas que não vingaram. E todas foram necessárias. É assim que funciona a ciência.

E é graças à ciência que brevemente poderemos sair à rua sem máscara, deixaremos de enxergar no passante um transmissor potencial, abraçaremos pessoas queridas, daremos conta de frequentar estádios de futebol e salas de concertos, voltaremos a ver peças de teatro e musicais. Graças à ciência voltaremos a dançar funk e forró, ouvir viola caipira e guitarra elétrica. Frequentaremos feiras livres e parques, sem medo de contaminação. Chamaremos família e amigos para apreciar os pratos que aprendemos a cozinhar nesses meses de isolamento. Tudo isso graças à ciência.

Em troca cabe-nos agradecer. Como? Aumentando as verbas para a pesquisa científica. Valorizando o trabalho do professor que, junto com o livro, é o maior responsável por transmitir de uma geração a outra o patrimônio cultural e científico da humanidade. Prestigiando as universidades públicas e os institutos de pesquisa. E, já que o segundo turno das eleições se aproximam, escolhendo governantes adequados, comprometidos com o saber científico e com o ensino de qualidade.
Seria um bom recomeço.

Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo


Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.