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Reerguendo a cortina de ferro | Alessandro Visacro

O conflito na Ucrânia deixa claro o recrudescimento da competição geopolítica entre grandes potências. O cerne do problema reside na contestação da ordem hegemônica instaurada logo após o término da Guerra Fria. Se por um lado o Ocidente, sob a égide norte-americana, deseja a manutenção do status quo, potências ditas “revisionistas” (China, Rússia, Irã etc.) almejam um novo arranjo de poder em termos globais.

Subitamente, observamos um agravamento das tensões do Báltico aos Bálcãs. Transformados em uma guerra por procuração do Ocidente, os combates no Leste Europeu não só trazem consigo os riscos de uma indesejável escalada no uso da força, como também sugerem uma dinâmica estratégica bastante sofisticada e complexa. Ater-se, tão somente, ao embate de tropas nas estepes ucranianas pode limitar a compreensão sistêmica que o cenário internacional requer.

Mais do que nunca, a complexidade intrínseca ao ambiente estratégico desafia a competência e a habilidade dos líderes mundiais em manejá-la. Valer-se de abordagens reducionistas ou modelos preexistentes pode ser temerário diante de novos desafios. Segundo Peter Drucker, “o maior perigo em tempos turbulentos não é a turbulência em si, mas agir com a lógica do passado”. Nesse sentido, reavivar os dogmas da Guerra Fria talvez não seja a opção mais sensata. Obviamente, lições históricas importantes podem e devem ser extraídas do longo confronto entre os Estados Unidos e a extinta União Soviética. Contudo, fomentar a retórica de que se vive uma nova Guerra Fria deve ser vista com muita cautela, sobretudo, no Ocidente. Porquanto, os governos nos regimes democráticos tendem a se tornar reféns das narrativas que eles mesmos ajudam a construir, subtraindo-lhes a flexibilidade exigida pela diplomacia. A revitalização da aliança militar ocidental, a redefinição do propósito da OTAN, a reavaliação do papel que compete às armas atômicas, dentre outras questões igualmente importantes, não devem se subordinar a visões maniqueístas. Apegar-se, de forma impensada, a um modelo conceitual anacrônico pode gerar efeitos simplesmente catastróficos. Portanto, mais importante do que se ater às semelhanças entre a Guerra Fria e o momento atual é perceber suas diferenças.

O primeiro questionamento advém da incontida ascensão chinesa. A disputa entre Washington e Pequim reproduzirá a ordem bipolar característica da Guerra Fria ou deveríamos considerar um mundo com múltiplos centros de poder? Na verdade, a lógica binária que regeu as décadas subsequentes a 1945 parece ser incompatível com as complexas dinâmicas de um planeta hiperconectado, dependente (em maior ou menor grau) de cadeias produtivas e mercados consumidores globais. Convém lembrar que, ao contrário dos dias de hoje, durante a Guerra Fria, os blocos antagônicos exibiam enorme independência econômica. Para se ter ideia, no ano de 2021, o comércio entre a China e a União Europeia foi de US$ 828,1 bilhões – uma cifra que simplesmente não pode ser ignorada. Paradoxalmente, as sanções econômicas impostas à Rússia pelas potências ocidentais colocaram à prova mecanismos regulatórios formais que fundamentam a ordem internacional que elas próprias pretendem preservar, além de produzirem efeitos de segunda e terceira ordem que comprometem a vitalidade econômica da União Europeia.

Durante a Guerra Fria, ambos os contendores ofereciam modelos universais incompatíveis e inconciliáveis. Entretanto, cosmovisões universais divergem de uma ordem genuinamente multipolar, subtraindo o papel desempenhado pela ideologia. Apenas o Ocidente mantém uma agenda política impregnada de preceitos ideológicos, como a promoção da democracia, defesa dos direitos humanos e outros importantes valores ocidentais – e justamente por tentar conciliar realismo político com um ideário abstrato, a diplomacia ocidental torna-se plena de ambiguidades e contradições (democracia é essencial até o momento em que leva a Irmandade Muçulmana ao poder no Cairo, por exemplo).

Na disputa travada entre o “Mundo Livre” e o bloco comunista, Estados coadjuvantes possuíam menor relevância. Nem mesmo os países reunidos na Conferência de Bandung (1955) eram, de fato, tão “desalinhados” como proclamavam. Hoje, inúmeros outros atores, incluindo entes não estatais, exibem enorme importância nas dinâmicas de poder, graças, sobretudo, ao predomínio de relações calcadas em redes de cooperação que promovem o surgimento de “ecossistemas” complexos adaptativos.

Reerguendo a cortina de ferro | Alessandro Visacro

Durante a Guerra Fria, o obtuso raciocínio “leste-oeste” se sobrepunha, invariavelmente, às idiossincrasias locais. Nos anos 1960, um golpe de Estado no Oriente Médio, uma campanha de bombardeio aéreo no sudeste asiático ou a contrarrevolução na América Latina, por exemplo, subordinavam-se aos mesmos dogmas. Hoje, ao contrário, a realidade no nível micro impõe que as potências competidoras adéquem, com muita flexibilidade, suas ações políticas e estratégicas a cada contexto específico. Ademais, o predomínio de ameaças híbridas, não admite um enquadramento rígido dos problemas de segurança e defesa sob uma perspectiva ortodoxa, estritamente vestfaliana. Enfim, o gap de Suwalki não é simplesmente o novo passo de Fulda. Taiwan não é a nova Berlim. É imprescindível que os líderes mundiais não insistam em soluções simplistas para problemas complexos, tampouco se tornem vítimas de sua própria retórica.


Alessandro Visacro – Autor dos livros “Guerra Irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história”“A Guerra na Era da Informação” e “Lawrence da Arábia”.

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