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A atitude mental das classes instruídas

Quando tentamos formar nossas opiniões de maneira inteligente, estamos inclinados a aceitar o julgamento daqueles que por sua formação e ocupação são compelidos a lidar com os assuntos em questão. Supomos que suas opiniões devem ser racionais e baseadas na compreensão inteligente dos problemas. O fundamento dessa crença é o pressuposto tácito não apenas de que eles têm conhecimentos especiais, mas também de que são livres para formar opiniões perfeitamente racionais. Entretanto, é fácil ver que não existe nenhum tipo de sociedade na qual exista tal liberdade.

A atitude mental das classes instruídas

Acredito que posso deixar meu argumento mais claro dando um exemplo retirado da vida de um povo cujas condições culturais são muito simples. Escolherei para esse fim o esquimó. Em sua vida social, eles são extremamente individualistas. O grupo social tem tão pouca coesão que dificilmente temos o direito de falar de tribos. Várias famílias se reúnem e vivem na mesma aldeia, mas nada impede que uma delas se instale em outro lugar e viva com outras famílias. De fato, durante um período da vida, as famílias que constituem uma comunidade esquimó estão constantemente se deslocando; e, embora geralmente retornem após muitos anos ao local onde seus parentes vivem, a família pode ter pertencido a muitas comunidades diferentes. Não há autoridade investida em nenhum indivíduo, nenhuma chefia e nenhum método pelo qual as ordens, se fossem dadas, poderiam ser cumpridas. Em suma, no que diz respeito à lei, temos uma condição de anarquia quase absoluta. Podemos dizer, portanto, que cada pessoa é inteiramente livre, dentro dos limites de sua própria capacidade mental, para determinar seu próprio modo de vida e seu próprio modo de pensar. No entanto, é fácil ver que existem inúmeras restrições que determinam seu comportamento. O menino esquimó aprende a manejar a faca, a usar arco e flecha, a caçar, a construir uma casa; a menina aprende a costurar e consertar roupas e a cozinhar; e durante toda sua vida eles usam suas ferramentas da maneira como aprenderam na infância. Novas invenções são raras, e toda a vida industrial do povo segue os meios tradicionais. O que é verdade para as atividades industriais não é menos verdade em seus pensamentos. Certas ideias religiosas lhes foram transmitidas, noções sobre o que é certo e errado, certas diversões e o prazer de certos tipos de arte. Não é provável que ocorra qualquer desvio em relação a esses. Ao mesmo tempo, nunca lhes passa pela mente que outra forma de pensar e agir seria possível, e eles se consideram perfeitamente livres em relação a todas as suas ações. Com base em nossa experiência mais ampla, sabemos que os problemas industriais dos esquimós podem ser resolvidos de muitas outras maneiras e que suas tradições religiosas e costumes sociais podem ser bem diferentes do que são. Do ponto de vista externo, objetivo, vemos claramente as restrições que prendem o indivíduo que se considera livre.

Não é necessário dar muitos exemplos dessas ocorrências. Parece desejável, no entanto, ilustrar a grande força dessas ideias que restringem a liberdade de pensamento do indivíduo, levando às lutas mentais mais sérias quando a ética social tradicional entra em conflito com as reações instintivas. Assim, entre uma tribo da Sibéria, encontramos a crença de que cada pessoa viverá na vida futura na mesma condição em que se encontra no momento da morte. Como consequência, um homem velho que começa a ficar decrépito deseja morrer, a fim de evitar a vida como incapacitado em um futuro sem fim, tornando-se dever de seu filho matá-lo. O filho acredita na retidão dessa ordem, mas ao mesmo tempo sente amor filial pelo pai, e muitos são os casos em que o filho tem que decidir entre os dois deveres conflitantes – um imposto pelo amor filial instintivo, o outro imposto pelo costume tradicional da tribo.

Outra observação interessante pode ser deduzida daquelas sociedades um pouco mais complexas, nas quais há uma distinção entre diferentes classes sociais. Encontramos tal condição, por exemplo, na América do Norte, entre os índios da Colúmbia Britânica, na qual é feita uma distinção nítida entre pessoas de origem nobre e pessoas comuns. Nesse caso, o comportamento tradicional das duas classes mostra diferenças consideráveis. A tradição social que regula a vida da nobreza é de certa forma análoga à tradição social de nossa sociedade.

É muito enfatizada a estrita observância da convenção e a exibição, e ninguém pode manter sua posição na alta sociedade sem uma quantidade adequada de ostentação e sem o estrito respeito à conduta convencional. Esses requisitos são tão fundamentais que uma presunção arrogante e um desprezo pela pessoa comum se tornam exigências sociais de um chefe importante. O contraste entre as propriedades sociais para a nobreza e aquelas para o povo comum é muito marcante. Do povo comum espera-se humildade, misericórdia e todas aquelas qualidades que consideramos amáveis e humanas.

Observações semelhantes podem ser feitas em todos aqueles casos em que, por uma tradição complexa, uma classe social é destacada da massa do povo. Os chefes das ilhas polinésias, os reis da África, os curandeiros de todos os países apresentam exemplos nos quais a linha de conduta e de pensamento de um grupo social é fortemente modificada por sua segregação da massa do povo. Em geral, em sociedades desse tipo, a massa do povo considera como seu ideal aquelas ações que deveríamos caracterizar como humanas; de modo algum que todas as suas ações estejam de acordo com a conduta humana, mas sua valorização das pessoas mostra que os princípios altruístas fundamentais que reconhecemos são também reconhecidos por eles. Não é assim com as classes privilegiadas. No lugar do interesse humano geral, predomina o interesse de classe; e embora seja errado dizer que sua conduta é egoísta, ela é sempre moldada de tal forma que o interesse da classe à qual pertencem prevalece sobre o interesse da sociedade como um todo. Se for necessário assegurar a classificação e melhorar a posição da família matando vários inimigos, não há hesitação em tirar a vida. Se os interesses da classe exigem a opressão do resto do povo, então ele é oprimido. Se o interesse da classe exigir que seus membros não desempenhem ocupações subalternas, mas que se dediquem à arte ou ao aprendizado, então todos os membros da classe competirão entre si para alcançar essas conquistas. É por essa razão que toda classe segregada é muito mais fortemente influenciada por ideias tradicionais especiais do que a massa do povo; não que a multidão seja livre para pensar racionalmente e que seu comportamento não seja determinado pela tradição, mas que a tradição não é tão específica, não tão estritamente determinada em seu alcance, como no caso das classes segregadas. Por essa razão, muitas vezes se constata que a restrição da liberdade de pensamento por convenção é maior no que poderíamos chamar
de classes instruídas do que na massa do povo…..

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Autor – Franz Boas nasceu em Minden, Alemanha, em 1858 e faleceu em Nova York em 1942. É considerado o “pai” da Antropologia americana e referência básica em Antropologia Cultural. Influenciou muitos pesquisadores, dentre eles, Ruth Benedict, Ruth Bunzel, Margaret Mead, Alfred L. Kroeber, Edward Sapir, Robert Lewie e o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Sua primeira formação foi em Geografia, Física e Matemática.

Tradutor – José Carlos Pereira é professor com pós-doutorado em Antropologia Social, doutorado em Sociologia, mestrado em Ciência da Religião, bacharelado em Teologia e licenciatura plena em Filosofia. É autor de mais de 90 livros em diversas áreas, publicados no Brasil e no exterior, além de algumas traduções de Franz Boas.

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