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Quero aprender a escrever | Rubens Marchioni

Cena 1: Márcia diz ao professor de Escrita Criativa: “Quero aprender a escrever. É que preciso dizer ao Silvio, em detalhes, que Ética é fundamental devido a esses cinco aspectos” – ela relaciona, um a um, o que seu interlocutor deve considerar sobre o assunto. E continua: “Também quero demonstrar que, no momento em que decide negligenciar o assunto, Silvio contribui para provocar ao menos seis consequências nefastas” – segue nova lista, muito clara em sua mente de pessoa que dispõe de uma cultura geral satisfatória.

O professor responde: “Pois não. Diga tudo isso a ele, por escrito. Fale como se estivessem conversando pessoalmente.” Claro, não há muito mais o que dizer. Porque escrever é isso: falar no papel sobre as próprias convicções, conversando com um leitor conhecido, de carne e osso. E depois editar o que disse, levando o texto ao nível mais alto em termos de qualidade. Nesse sentido, tudo de que se precisa é dispor do desejo de se comunicar, de repertório para não correr o risco de entregar o que não tem, de vocabulário, da coragem de redigir a primeira versão e da atitude necessária para reescrevê-la.

Depois de alguns dias, Márcia apresenta ao professor o que produziu, dizendo que ainda não está do jeito que ela quer. Falta alguma coisa – pondera. Talvez devesse aprofundar esse ou aquele aspecto da reflexão dirigida ao Silvio, seu público-alvo.

O professor responde dizendo que essa sensação é normal. Acontece com todo escritor quando termina a primeira versão do texto. Inclusive com aqueles que ostentam um Nobel de Literatura ou coisa parecida. Lembra que para Márcia ainda falta aprender e aplicar o conceito de ritmo no texto, assunto essencial para uma construção textual arejada. Depois, ela deve reler bastante, com espírito crítico e ouvidos apurados, o que escreveu sobre Ética. E reescrever. Reescrever tantas vezes quantas for necessário, até que sua comunicação chegue ao nível de qualidade desejado. Escritor profissional trabalha assim.    

Pronto. Oitenta por cento do curso está concluído. Basta a aluna colocar essas recomendações em prática. O professor a ajudaria fazendo novas recomendações, aqui e ali, a partir de novas demandas. Mas ela tocaria o projeto, com a autonomia necessária. Márcia tinha dado o salto, entrado no terreno profissional da palavra. Mesmo que não desejasse se profissionalizar nessa arte. Saber nunca é demais, diz o jargão.

Corta para a cena 2: Agora estamos diante de outro personagem – Xpto de Tal. Ele não sente qualquer necessidade de dizer nada a ninguém, por motivo nenhum – curso superior é apenas uma invenção dos pais, a que ele estrategicamente se submete. Não tem repertório sobre um assunto – que assunto? Não dispõe de vocabulário adequado por meio do qual se expressaria. Ao conversar, o máximo que consegue, em termos de uso da norma culta, é dizer que “Esse lance de direitos humanos é da hora, tá ligado, mas tipo só tem direitos humanos pra bandido, essa parada é cascuda e o baguio é irado, véi, aí os mano pira.” Por fim, não tem parâmetros, espírito crítico, para avaliar o que escreveu e, então, tomar livremente a iniciativa de reescrever mais algumas vezes. Detalhe: dentro de alguns poucos meses, Xpto vai participar de um processo seletivo, única forma de tentar ingressar num curso superior para acalmar os pais – os pais. Por conta disso, terá de escrever, coisa que decididamente não sabe.

Falando do ponto de vista de aprendizado a fim de realizar uma prova, sem existir um o que, trazido pelo candidato, é difícil avançar para o como. Qual é o papel do professor de Escrita Criativa nesse caso? Ajudar a desenvolver o como. Nesse sentido, eu não sou um professor. Sou um “Contador de segredos”. Dos meus segredos de escrita. Conto segredos a quem dispõe de matéria-prima a ser transformada em mensagem adequada e deseja aprender a alquimia que a transforma em texto. Caso contrário, fico na incômoda condição de oferecer soluções a quem não tem o problema, propor respostas a quem não fez qualquer pergunta. A sensação é semelhante àquela que se experimenta ao mascar um suculento naco de Bombril. Não rende.  

Tudo bem, pode até ser possível ajudar Xpto a construir isso repentinamente, se ele quiser. A tarefa, no entanto, é das mais difíceis e arriscadas. Porque estaremos lutando para fazer com que alguém com nível intelectual compatível com o ensino fundamental tenha a performance de quem frequenta com sucesso o último ano do ensino médio. Ora, forçar o nascimento de um bebê no quinto mês de gravidez pode ser fatal também para a mãe. Além de colocar em risco a reputação do médico obstetra bem intencionado.

Lamentavelmente, não existe Machado de Assis que dê jeito nisso em tão pouco tempo e sem a cumplicidade profunda do estudante. Um Machado Freire, talvez, fusão de Machado com Paulo Freire? Sei lá. A tentativa, se um dia isso for possível, é válida e bem-vinda. Avisem-me, por favor.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto.  https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]