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Quem não vive para servir… | Rubens Marchioni

Quando jovem li uma frase que suporta boa parte do pensamento cristão. Dizia: “Quem não vive para servir não serve para viver.” Se colocada em prática, todas as Constituições, todas as leis, toda legislação poderia ser dispensada, apagada. Afinal, ela sintetiza tudo de que precisamos para a experiência de uma sociedade em que viver feliz seria apenas coisa de todo dia, de toda a existência.

Aquele jogo vital de palavras dava um xeque-mate no indeciso. Simplesmente condicionava o ato de servir à ideia de estar apto para encarar o projeto de viver, de pertencer a um grupo social. Mais do que apenas ocupar um espaço ociosamente. Quem não está a favor da vida está contra ela. Assim.  

Na pandemia, servir é resolver problemas ligados à saúde da população em todas as suas camadas. E ninguém pode perder a vida. O direito à existência é sagrado. Mesmo sabendo o final do filme, cena decisiva em que todos deixaremos de fazer parte dessa trama que é a história humana.

A propósito disso, nenhuma autoridade tem direito de decidir que esse ou aquele personagem vai fazer apenas uma participação especial. Não está autorizada a explodir o barco em alto-mar para colocar fim na existência de um ator. Ou impor-lhe um papel secundário, talvez de figurante.  

Batendo de frente com essa arrogância, as pessoas clamam por saúde. E isso é um grito que fala de urgência. Um grito abafado, que nasce de uma vítima sufocada, por vezes impedida de respirar devido à falta de equipamento básico, de remédio essencial. O apelo consome a última reserva de ar que garante sua sobrevivência, o que o torna ainda mais grave, ensurdecedor, como aquele que se ouve nos corredores ou na fila de espera.

Ora, oferecer um serviço adequado é servir. E se todos têm os mesmos direitos fundamentais à vida, não é menos claro que os hospitais devem dispor de recursos técnicos e humanos na medida certa para atender, adequadamente, cada pessoa que busca por tratamento e conta com ele. Mais ainda quando ela foi acometida pela Covid. A enfermidade é imediatista. Não aprendeu nada sobre esperar até que o poder público providencie respostas concretas para o problema. O poder é lento, e isso é de matar.

Mas esse entendimento passa, primeiro, pela inteligência. De preferência, acompanhada de um senso indispensável de humanidade, empatia. A ausência de pensamento impede a compreensão até mesmo de verdades básicas como o valor da vida. Inclusive daquela que se apoia nas mãos do governo, porque foram confiadas ao seu cuidado. A carência no uso mínimo de alguma racionalidade sustenta o negacionismo. Apoia o uso da vida do outro como objeto para se divertir. Ou para arrancar aplausos de uma parcela de lunáticos que apostam no sadismo e na violência como forma de organizar a sociedade.

É claro que não podemos adotar uma atitude cômoda de passividade diante desse drama que é de todos. As soluções disponíveis, numa sociedade democrática, precisam vir das mãos dos representantes legais da população. Não é por qualquer outra razão que foram eleitos. Mas, em situação de abandono por parte do poder, existe a possibilidade do exercício do direito de organização popular. Por meio dele, reúnem-se forças para lembrar aos adormecidos dos palácios de que sua negligência gera sofrimento e morte para a população. Sobretudo quando se trata dos empobrecidos do país.

Servir, em tempos de pandemia, é evitar que a doença se alastre por falta de cuidados sanitários pessoais. É contribuir para que a saúde dos contaminados seja restituída. Mas isso não acontece por acaso. É preciso tomar providências nesse sentido, a fim de que direitos humanos básicos não sejam negligenciados devido à falta de entendimento de que servir é viver e só vive de maneira eficaz aquele que serve. Viver é direito sagrado. É direito humano. E é dever do Estado. Ele que não está autorizado a agir à revelia desse imperativo inegociável. Viva a vida!


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto.  https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]