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Português brasileiro: Uma viagem diacrônica | Mary A. Kato

“Como, o que e por que escavar?”
(Tarallo, 1990: 173)

 

Desde a introdução do estudo da Linguística moderna no currículo dos cursos de Letras das universidades brasileiras, os estudos diacrônicos foram relegados a um segundo plano, ou mesmo ignorados, como consequência da ideologia rigidamente a-histórica do início do estruturalismo. Em muitos meios, os importantes trabalhos filológicos e comparativistas desenvolvidos no Brasil (cf. Naro, 1976, Mattos e Silva, 1988) deixaram de ser incluídos na bibliografia das disciplinas de formação dos nossos alunos de Letras.

No início, essa desenfatização progressiva nos estudos históricos deveu‑se a um fenômeno que apenas refletia o que ocorria nos demais países, principalmente por força do sucesso inicial das teses estruturalistas, como, por exemplo, a possibilidade de se levantar um sistema linguístico sem se ter conhecimento de seu passado, de sua história. Posteriormente, porém, a eliminação (ou a opcionalização) do latim, do francês e do espanhol no currículo do primeiro e segundo graus reduziram o trabalho dos professores universitários de Filologia, Linguística Românica e Linguística Histórica aos aspectos externos da mudança ou a cursos de iniciação na língua latina ou em alguma língua românica ou indo-europeia, com apenas leves acenos comparativistas.

Dentro do pressuposto de que história se faz a partir das origens – no início do túnel, na metáfora de Tarallo (1990) –, a Linguística Histórica parecia, dessa forma, estar fadada a morrer. Desconhecedor da história e vivendo em um contexto povoado de ficção científica, nosso aluno de Letras não tinha motivação para enfrentar livros embolorados, em bibliotecas escuras e poeirentas, para decifrar textos cuja língua para ele nada tinha de familiar.

Ao contrário, os estudos de Linguística Sincrônica, principalmente na linha Sociolinguística, apresentavam um atrativo mais de acordo com o interesse da moçada. Lá iam eles de gravador em punho entrevistar homens e mulheres, pobres e ricos, velhos e jovens, munidos de seu traquejo com aparelhos eletroeletrônicos e com sua descontração para a comunicação oral. Os objetivos também pareciam mais relevantes para o nosso aluno: desafiar prescrições gramaticais, observar a variedade do uso da língua em contexto, descrever o português em sua variedade geográfica, em seus problemas de contato com a língua dos nativos e dos imigrantes, descobrir as diferenças da gramática da fala e da gramática da escrita.

A Sociolinguística floresce não apenas no Brasil, mas em todo o continente americano: Canadá, Estados Unidos e América Latina. É a vocação do colonizado, em busca de identidade linguística própria.

Mas mexer com o problema da identidade é mexer com a história. Quer‑se saber como tal identidade foi adquirida. A opção metodológica para responder a essa questão, dentro da linha Sociolinguística, não é aquela que vigorou na época pré‑estruturalista, isto é, direcionando a pesquisa do passado para o presente, mas do presente para o passado, cada fase concebida como um objeto sistematicamente heterogêneo (Labov, 1975). Se a língua em cada fase apresenta variação entre formas velhas e formas novas, é possível buscar no presente as pistas para a língua do passado. É a sincronia a serviço da diacronia.

Tarallo vale‑se dessa abordagem em suas aulas e também em seu livro (Tarallo, 1990) para tornar a Linguística Histórica instigante para o jovem. Em lugar de transportá‑lo para o fundo do túnel, convida‑o inicialmente a escavar do presente para o passado. O estudante se defronta com um texto de 1850, de José Maria Paranhos, muito próximo dos que ele está acostumado a ler, exceto por algumas construções curiosas, como, por exemplo, as que apresentam clíticos:

[…]

(5) […] que profundamente comoveu‑me, […]

(6) […] que os próprios homens lhe não recusavam

[…]

(Tarallo, 1990: 17)

Em seguida, o autor apresenta‑lhe um texto do século XVIII, com trechos quase irreconhecíveis para um leitor contemporâneo. Tarallo alista esses trechos e mostra ao leitor que, embora estranhas à primeira vista, essas formas tornam‑se claras “à medida que penetramos em sua estrutura e funcionamento” (p. 23):

[…]

intitulandoce      =     intitulando ce

seachar         =    se achar

edandolha     =    e dando lha (lhe a)

mepediraó    =    me pediraó

[…]

(Tarallo, 1990: 22)

O autor mostra, em sua visão laboviana, que, em qualquer fase da história da língua que investiguemos, iremos encontrar “formas residuais do passado mais remoto contracenando com formas inovadoras de um futuro” (p. 23), diríamos, próximo.

A Linguística Histórica torna‑se, através dessa perspectiva, uma empreitada não só factível, mas instigadora para o jovem pesquisador. A década de 1980 vê, segundo Tarallo (1984), a “Fênix finalmente renascida”.

Mas teria estado a Linguística Histórica realmente falecida? O que a maioria não sabia, ou não deu a importância devida, era que, concomitantemente a essa empreitada variacionista diacrônica, liderada no Rio por Anthony Naro, em São Paulo por Fernando Tarallo e em Belo Horizonte por Marco Antônio de Oliveira, desenvolviam‑se paralelamente a pesquisa semântico-funcionalista de Faraco (1982) e o trabalho contínuo daqueles que, sem fazer alardes, arriscavam escavar muito mais fundo. Com o cuidado do filólogo no tratamento e identificação de textos, faziam um trabalho de arqueologia, procurando descrever o estado sincrônico de um passado remoto. Esse tipo de trabalho pode ser visto em Estruturas trecentistas, obra monumental de Rosa Virginia Mattos e Silva, da Universidade Federal da Bahia, hoje reconhecidamente o centro que se especializou no estudo de textos antigos.

Com esse trabalho cronologicamente paralelo, mas com objetos cronologicamente distantes, Fernando, o detetive variacionista, e Rosa Virginia, a arqueóloga‑estruturalista, vislumbraram o momento de encontro no meio do túnel. Vislumbraram ainda o dia em que seria inevitável um trabalho de colaboração, assim como os ingleses e os franceses, apesar de suas diferenças, terem acabado se dando as mãos no túnel do canal da Mancha.

Enquanto Fernando e Rosa Virginia cortejavam‑se à distância, trocando cartas e textos, houve o casamento selado de Tarallo, intravariacionista, com Kato, intervariacionista gerativista. Em 1989, aparece publicado o manifesto da dupla (Tarallo e Kato) “Harmonia trans‑sistêmica: variação inter‑ e intralinguística”, cuja versão mais diacrônica (Kato e Tarallo) circulava desde 1987. Para eles, os mesmos princípios e parâmetros deveriam dar conta da variação interlinguística e intralinguística e os conceitos de “encaixamento” estrutural e “parâmetro” poderiam ser conciliados.

No início, a proposta foi vista como herética, tanto por variacionistas quanto por gerativistas, mas a empreitada se iniciou, assim mesmo, com um grupo de estudantes que compraram essa forma heterodoxa de estudar gramática e nela contamos com a ajuda inestimável de Charlotte Galves, na formação dos alunos em teoria gramatical. Sua contribuição não se limitou apenas à formação sólida em teoria gerativa. Tendo aprendido primeiro o português europeu (PE) como língua estrangeira, viu‑se tendo que desaprender tudo que já dominava para poder entender o que se passava no português brasileiro. Seus trabalhos comparativistas entre essas duas gramáticas (cf. entre outros Galves, 1987) foram uma inspiração para o início da empreitada diacrônica.

O fato de que, em pesquisa diacrônica, o investigador não pode usar a competência do falante, nem mesmo a própria, coloca o linguista em pé de igualdade com a criança que aprende sua língua, isto é, ele só pode basear‑se em dados positivos, e seu desenvolvimento linguístico depende de um input “robusto”, nos termos de Lightfoot (1989, 1991). Lidar com dados positivos “robustos” significa não apenas uma imersão nos dados em busca de insights e descobertas de ordem fenomenológica, mas uma análise que apresente argumentos quantitativos de correlação ou de concomitância de mudanças, para mostrar se houve efetivamente o que se considera uma mudança de parâmetro (ou, em termos labovianos, uma mudança encaixada em uma matriz estrutural). A análise empírica justifica‑se ainda na medida em que ela pode apreender desde as fases que Roberts (1990) chama de passos (steps) e de reanálise até aquela que Lightfoot chama de catastrófica (ou que ambos chamam de paramétrica).

Roberts vê a mudança em três fases:

  1. passos: refere‑se à fase em que certas construções começam a ficar menos frequentes;
  2. reanálise: refere‑se à fase em que tais estruturas sofrem uma redução significativa de frequência e passam a ser interpretadas/representadas diferentemente;
  3. mudança paramétrica: refere‑se à fase em que tais estruturas deixam de existir na gramática, isto é tornam‑se agramaticais.

Ora, essas etapas, pela sua própria definição, dependem crucialmente de verificação empírica de frequência de ocorrência. Mas a reanálise e a mudança paramétrica exigem uma teoria sobre as línguas‑I e uma teoria de aquisição.

Se esse quadro metodológico nos deu a “picareta” para escavar o túnel, a pergunta O que buscar na escavação? vem da teoria gramatical. É ela que fornece as hipóteses sobre essas propriedades correlatas e reduz as variáveis, selecionadas pelos variacionistas com base em alguns dados suspeitos, mas que acabam se revelando, muitas vezes, fenômenos periféricos, que não irão afetar o núcleo da gramática. Quanto aos tópicos de pesquisa, vários dos trabalhos inspiram‑se no programa de pesquisa implícito em Kato e Tarallo (1987). Levantaram‑se ali a) a inversão VS como um fenômeno não homogêneo, b) a correlação entre a restrição de monoargumentalidade para inversão e o desaparecimento de clíticos, c) a perda em progresso do sujeito nulo e seu resíduo na construção inacusativa, decorrente do fato do expletivo nulo ser o último a desaparecer e d) a correlação entre as estratégias de relativização e as elipses em coordenação. Além desses, havia os intrigantes contrastes encontrados por Galves (1987) entre o PE e o PB. Os jovens pesquisadores têm alguns pontos por onde começar a escavação. Encontram materiais classificáveis, fragmentos ambíguos e aos poucos começam a ficar “competentes” no objeto linguístico fóssil que investigam. Começam a ser capazes até de dizer o que era gramatical ou não.

As pesquisas em andamento consolidaram‑se com a vinda do professor visitante Ian Roberts em 1990, que já havia estado no Brasil em 1989, por ocasião do Instituto de Linguística da Abralin (Associação Brasileira de Linguística), no Rio de Janeiro, ocasião em que também estiveram os professores David Lightfoot e Anthony Kroch. Mas sua permanência na Unicamp por dois meses foi absolutamente crucial não só para os alunos pós‑graduandos, mas também para nós docentes – Fernando, Charlotte e Mary – engajados no projeto de reativar a pesquisa diacrônica no Instituto de Estudos da Linguagem. Sob sua orientação, as questões sobre mudança tornam‑se mais explícitas, as hipóteses mais encaixadas em uma teoria de mudança e as alternativas de explicação mais facilmente refutáveis.

Outra influência visível nos trabalhos é a de David Lightfoot, o primeiro autor a mostrar a interdependência entre uma teoria da mudança e uma teoria da aquisição da linguagem. Muitos alunos beneficiaram‑se de suas breves visitas ao Brasil, em Institutos da Abralin, e a apresentadora desta seção teve a experiência não só de participar de dois Institutos Linguísticos em que Lightfoot lançou suas ideias como também teve o privilégio de com ele interagir durante seu sabático na Universidade de Maryland em 1991.

É graças a essa interação com especialistas experientes que começamos a poder direcionar nossa resposta para a terceira questão de Tarallo (1990): Por que escavar?

Para o variacionista, a resposta seria: a) para descrever as mudanças ocorridas e b) para avaliar os fatores externos e estruturais que propiciaram as mudanças. O gerativista, por sua vez, procura saber que parâmetro deve ter tido seu valor alterado de tal forma que essa alteração justifique todas as mudanças superficiais ocorridas. Mas o motivo mais ambicioso da empreitada gerativista é procurar associar mudança e aquisição, ideia defendida por Lightfoot desde 1979. Na versão de Clark e Roberts (1992), o input é passível de ser associado a diferentes gramáticas. Não são pressões externas que levam a criança a selecionar uma ou outra, mas um mecanismo avaliativo interno de adequação (fitness metric). Através das mudanças linguísticas que ocorrem efetivamente, pode‑se obter informações cruciais sobre os fatores em que a criança se baseia para selecionar a gramática. Nessa visão, a Linguística Histórica passa a ser um meio para se entender aquisição.

Todos os trabalhos incluídos neste livro devem ser vistos como trabalhos em andamento, partes de projetos maiores de seus autores. Mas os resultados fornecem uma descrição bastante instigante do que vem mudando no português do Brasil, e o conjunto desses resultados é uma evidência de que o que ocorre não é um processo de “deterioração da gramática”, como pensam os escolarizados pela ótica da gramática prescritivista, mas uma reorganização interna coerente, uma mudança radical (paramétrica) na língua. Entre os aspectos mais extraordinários do PB estão o progressivo empobrecimento de sua morfologia flexional, o uso extensivo de categorias vazias cuja identificação não pode ser feita através da flexão; a falta de mobilidade, ou de movimentos longos, de elementos distintos, como verbos, pronomes interrogativos e clíticos. Por outro lado, mesmo quando a morfologia é capaz de identificar um pronome nulo, é o pronome lexical que se manifesta. O sujeito, seja como a categoria que concorda com o verbo, seja como tópico, pede realização fonológica. Apesar dessa aparente desgramaticalização do PB, o entendimento entre as pessoas é tão perfeito (ou imperfeito) como o que ocorre com falantes do italiano ou espanhol, línguas de complexa morfologia, cheia de movimentos de subida ou de inversão, ou com falantes de línguas como o inglês ou francês, com pouca morfologia flexional e com pouco uso de pronomes nulos. A consciência dessas mudanças sistemáticas, que desembocam em uma língua distante de suas irmãs românicas, até mesmo do português de Portugal, é necessária para entender por que os estudantes escrevem como escrevem e por que a língua dos textos escolares, para as camadas que vêm de pais iletrados, pode parecer tão estranha quanto a de um texto do século XVIII para o linguista se iniciando em estudos diacrônicos. O Brasil apresenta, assim, um caso extremo de diglossia entre a fala do aluno que entra para a escola e o padrão de escrita que ele deve adquirir (cf. análise de aquisição de clíticos em Corrêa, 1991).

Segue adiante um resumo dos trabalhos contidos neste livro. As referências que aí aparecem podem ser encontradas em cada artigo. A ordenação é coerente com a estratégia de Tarallo: de processos mais recentes, com dados mais familiares, para mudanças mais antigas, com dados menos próximos do falante atual. O trabalho de Galves é o último, por tentar propor uma estrutura sentencial que acomode vários dos fenômenos descritos. Comentários e projeções mais globais sobre as mudanças no PB serão feitos no texto de Roberts no Posfácio, onde ele, mais do que ninguém, poderá avaliar, dentro de sua teoria, as mudanças que essa obra tornou visíveis.

Os dois primeiros artigos são de autoria do homenageado desta coleção, Fernando Tarallo. Os trabalhos resumem as ideias centrais e globais do que ele pensava sobre o português brasileiro. No primeiro, a discussão é em torno da problemática da origem crioula do português do Brasil. Ao discutir a tese crioulista de Guy, Tarallo retoma as ideias clássicas de Francisco Adolpho Coelho, para quem o PB não é mais degenerado do que o PE. Tarallo analisa o PB como uma “língua de tipo misto”, que “compartilha propriedades com línguas não relacionadas, quer crioulas ou não, e que está se distanciando do superstrato original”. O autor lamenta que o trabalho de Guy não contenha a menor menção ao trabalho original de Coelho e acredita que, se Guy tivesse conhecido a obra deste último, talvez seu trabalho (em particular o capítulo “Direção de cliticização, objeto nulo e pronome tônico na posição de objeto em português brasileiro”) tivesse sido completamente diferente.

O segundo artigo de Tarallo traz o seu diagnóstico de que é na passagem do século XIX para o XX que ocorreram as mudanças quantitativas dramáticas no PB. O autor admite, todavia, que, embora as mudanças viessem se processando há mais tempo, “as circunstâncias sociais podem não ter sido suficientemente satisfatórias para que a pena brasileira começasse a escorrer sua própria tinta”. Tarallo reúne vários trabalhos de seus ex‑alunos para mostrar o fenômeno de “encaixamento” de Weireich, Labov e Herzog (cf. referência em Tarallo, segundo capítulo deste volume) e é neste artigo que Tarallo retoma mais extensivamente o seu trabalho de doutorado, sobre as relativas, sustentando ainda aqui a sua tese: “o português europeu é fortemente marcado por regras de movimento enquanto na modalidade brasileira regras (ou deveríamos dizer formas) são geralmente derivadas via apagamento de constituintes in situ”. Kato irá retomar essa tese de Tarallo no capítulo “Recontando a história das relativas no português do Brasil”, e uma reinterpretação paramétrica do conjunto de mudanças reunidas por Tarallo, acrescidas de outras, é feita neste volume por Galves no capítulo “O enfraquecimento da concordância no português brasileiro”.

O trabalho de Duarte procura acompanhar historicamente o preenchimento progressivo do sujeito pronominal no português do Brasil, usando como hipótese a tese do paradigma funcionalmente rico de Roberts (1990). A autora mostra que resíduo de sujeito nulo no português ocorre para a terceira pessoa, dependente para sua identificação, fundamentalmente, de um reforço externo ao elemento de concordância. Os contextos de resistência à mudança, para a primeira pessoa, a que mais aparece expressa atualmente, estão na sentença-raiz, com verbo simples, quase sempre precedido de negação. Para a segunda pessoa, são as sentenças interrogativas. Comparando escrita e fala, Duarte verifica que a terceira pessoa, que não havia apresentado mudança significativa historicamente, aparece com a mais expressiva diferença entre essas duas modalidades.

Cerqueira explora a mesma mudança de redução de formas diferenciadas para as pessoas gramaticais, mas desta vez no sistema de possessivos. Adota para o sintagma nominal, seguindo Boff (1991), uma estrutura encabeçada por um núcleo Det(erminante) independente de um núcleo de concordância (agr) intermediário, para permitir a co‑ocorrência do artigo e do possessivo. O núcleo agr é responsável por dois processos: a atribuição de Caso ao seu especificador (o possessivo) e a transmissão ou checagem de traços de concordância com o Nome. Com o enfraquecimento da concordância, a especificação do traço Pessoa, dependente do nódulo agr, que atribui nominativo ao seu Especificador, ficou reduzida à primeira e segunda pessoas do ato de fala, isto é, aquelas que são dêiticas. Para os demais casos, restou a atribuição via preposição (dele/dela/da gente) como no caso dos complementos nominais.

O trabalho de Cyrino recupera fatos descritos em Cyrino (1990), a saber a associação do fenômeno do objeto nulo no português do Brasil – diferente do objeto nulo do português europeu (pe), este ligado a operador – à perda da subida de clíticos e sua cliticização ao verbo principal, aí funcionando como uma flexão. Naquele trabalho Cyrino previa o desaparecimento do sistema de clíticos e a pesquisa relatada neste volume procura descobrir como se implementa essa mudança. Seus resultados mostram que a partir da variação entre clítico lexical e clítico nulo, quando sua função é de pro‑forma proposicional, o fenômeno se estende depois para o clítico nominal, gerando o que é hoje referido como objeto nulo.

O trabalho de Pagotto mostra igualmente que, embora o português clássico e o português brasileiro apresentem semelhanças superficiais em relação à possibilidade de próclise ao verbo principal, a impossibilidade de próclise a auxiliares neste último é um indício de que a principal característica dos clíticos no pb é sua perda de movimento longo. O autor atribui essa mudança e também o desaparecimento dos clíticos no pb ao enfraquecimento da concordância. Os clíticos de terceira pessoa são os únicos que apresentam concordância de gênero e número e, assim, além de perderem o movimento, acabam também desaparecendo do sistema.

O trabalho escrito por Nunes dá um tratamento fonológico ao problema da mudança posicional observada diacronicamente com os clíticos. Seu estudo tem como ponto de partida a diferença entre o pb e o pe em relação ao direcionamento da cliticização. Para explicar por que os clíticos de terceira pessoa comportam‑se diferentemente dos demais clíticos, tendo mais restrições de distribuição do que os de primeira e segunda pessoas, o autor dá uma explicação fonológica. A proposta de Nunes é de que os clíticos de terceira pessoa no português, embora aparentemente tenham perdido o l – ao contrário do italiano e do espanhol – é ainda constituído de uma sílaba com onset subjacente, o qual se realiza sob condicionamento externo. Com a mudança da direção de cliticização da esquerda para a direita, que torna obrigatória a próclise, o clítico acusativo de terceira pessoa não tem, em certas posições, condições para licenciar seu onset e acaba desaparecendo.

Retomando a tese de Tarallo (1983), Kato reinterpreta a representação sintática das estruturas relativas no pb. Tarallo mostra que o que ocorre historicamente com as relativas é o fato de a estratégia “padrão” dar lugar à estratégia “cortadora”, coocorrendo ambas com a estratégia resumptiva. Para ele, nas resumptivas e nas cortadoras o que é um complementizador, diferindo da padrão por não apresentar o movimento‑Q. A proposta de Kato é que, nos três casos, o que é um pronome relativo. A Gramática Universal possibilitaria a extração de uma posição interna à sentença ou de uma posição de deslocamento à esquerda, posição essa postulada como regida por um núcleo frequentemente nulo. Ao se relativizar a posição em deslocamento, resulta uma cadeia‑Q legítima, pois sua cauda tem caso e papel temático, atribuídos por esse núcleo. Propôs‑se ainda que o NP deslocado regido por núcleo nulo é sempre acusativo, o que torna o pronome relativo invariável. O fato de apresentar um regente próprio e de o NP deslocado não c‑comandar o pronome resumptivo ou a lacuna faz com que a estrutura de deslocamento mantenha com a relativa uma relação paratática. O pronome resumptivo e a lacuna na relativa seriam apenas epifenômenos desses processos anafóricos gerais da parataxe. É na possibilidade e forma da elipse de VP que as línguas variam, mas essa diferença é atribuída à possibilidade do que permanece em VP em estrutura‑S.

O estudo sobre as interrogativas, de Lopes-Rossi, analisa a mudança por que passou o português do Brasil relativamente a construções interrogativas sim/não e com pronome interrogativo. Nas perguntas do tipo sim/não, Lopes-Rossi mostra a perda do fronteamento do verbo, fenômeno também ocorrido em perguntas‑Q. Nestas, além da perda do fronteamento do verbo, observa‑se o aumento substancial da forma o que, a inserção cada vez mais frequente dos expletivos que ou é que, coincidindo essas observações com o estudo variacionista de Duarte (1992). Mostra ainda seu estudo a ausência frequente do movimento‑Q no PB e sua perda completa dos fenômenos de V2 residual observados em outras línguas românicas. Lopes-Rossi verifica, além disso, a ocorrência frequente de deslocamentos à esquerda (ou de Tópico) em ambos os tipos de pergunta e considera a possibilidade de uma reanálise do sintagma fronteado como Spec de IP, a partir da qual o verbo passa a ser reanalisado não mais como núcleo de COMP, mas como núcleo de IP, passando a haver alternância entre a ordem NP V e V NP até a metade do século XX. O trabalho de Lopes-Rossi apresenta uma hipótese para o aparecimento crescente dos expletivos que e é que. Seriam interrogativas formadas a partir de estruturas clivadas (cleft), no início apenas com a clivagem de sujeito e de objeto. A clivagem irrestrita de outros constituintes acarreta uma mudança na forma das interrogativas, com variação entre a interrogativa clivada com e sem cópula. O uso produtivo de deslocamento à esquerda, colocada por Kato (neste volume), como lugar de extração das relativas “não padrão”, é, assim, constatada por Lopes-Rossi como a posição desencadeadora ou reforçadora da mudança de ordem.

Torres Morais estuda a mudança de ordem nas sentenças afirmativas no português do Brasil a partir do século XVI. As ordens encontradas mais frequentemente nessa época seriam as que envolvem movimento do verbo. O português admitia nessa época o movimento do V para uma posição mais alta, de onde ele atribuiria nominativo por regência, licenciando a ordem VSO, típica nas sentenças interrogativas, imperativas, optativas e de caráter narrativo. Além disso, as ordens XVS e VS também eram encontradas ao lado de SVO, sugerindo estruturas do tipo V2, tal qual sugerido, para fases mais antigas, por Ribeiro (1990). As inversões apresentavam, na época inicial estudada por Torres Morais, caráter optativo, e a ordem SVO começa a aparecer cada vez com mais frequência. A autora localiza o momento em que a inversão deixa de existir (séc. XVIII) e procura correlações com a perda do sujeito nulo e da restrição V2 nas declarativas, para poder concluir tratar‑se de uma mudança paramétrica. Essas mudanças são acompanhadas do uso crescente de próclise, mesmo em início de sentença, em violação à lei de Tobler‑Mussafia (T/M). Adotando a teoria de Cardinalletti e Roberts (1991), que propõe INFL implodido em três núcleos funcionais: AGR1, o mais alto, AGR2 e T (o mais baixo), a autora propõe que o PB desativa AGR1 nessa mudança.

O trabalho de Ribeiro faz uma escavação mais profunda, começando com os dados trecentistas de Mattos e Silva (1971), passa pelos séculos XV-XVIII, e chega ao português contemporâneo. O objeto de seu estudo é a evolução dos usos dos verbos haver, ter, e ser e a formação dos tempos compostos no português. Ribeiro faz uma descrição inicial dos usos desses três verbos partindo das generalizações descritivas de Clark (1978) e mostra, por exemplo, que, existe uma relação léxico-semântica e estrutural entre o emprego desses verbos em construções locativas e a formação e desenvolvimento dos tempos compostos. Interpreta suas descobertas, a seguir, usando Roberts (1990, 1992). Sugere que cada mudança léxico-semântica dessas formas verbais pode ser considerada um passo para reanálises estruturais (gramaticalizações, no caso) e propõe que as mudanças estudadas localizam-se, inicialmente, no âmbito da reanálise, ainda no domínio da “performance”, não afetando a gramática. Considera, porém, o fenômeno da gramaticalização de haver como afixo de futuro, interpretado por Roberts (1992) como decorrente de sua reanálise como núcleo do nível I-1, um morfema preso, a qual, por sua vez, pode ser relacionada com a perda de restrição de clítico em segunda posição no PB. Como esta é atribuída por Pagotto e por Galves (ambos neste volume) ao enfraquecimento da flexão, Ribeiro acredita poder encaixar tanto a obsolescência de ser como o uso restrito de haver nos tempos compostos a uma mudança paramétrica.

A proposta de Galves é retomar as mudanças que Tarallo (1992) e também Tarallo (segundo capítulo deste volume) analisa como “encaixadas”, na visão variacionista, e discuti‑las à luz de uma perspectiva chomskiana. Seu objetivo é responder à pergunta: qual a mudança profunda que dá origem às mudanças superficiais encontradas? Sua resposta é que ela tem a ver com a natureza do morfema de concordância, presente na flexão verbal. Seu trabalho retoma os resultados de vários estudos que correlacionam o fenômeno estudado com o enfraquecimento da concordância e procura elaborar uma estrutura sentencial abstrata que dê conta do conjunto desses fatos. Propõe que essa concordância fraca não constitui um núcleo autônomo, mas um mero afixo de Tempo (T), e que haveria um outro núcleo AGR mais alto do que T, em cujo especificador se encontraria o tópico do PB, enquanto, para as línguas de AGR forte, esse especificador seria o lugar do sujeito que recebe o nominativo por concordância e também a posição para onde sobe o verbo. Com esta representação a autora procura mostrar como as análises de fatos diversos descobertos sobre o PB podem ser explicadas por uma única propriedade.

Finalmente, o posfácio de Ian Roberts, um dos organizadores do volume, coloca o português brasileiro em uma perspectiva comparativa romanística, mostrando as similaridades entre o que acontece no português brasileiro atual com o que aconteceu com outras línguas românicas, principalmente com o francês. Mas sua análise mostra, sobretudo, como fatos aparentemente tão diversos são facilmente interpretáveis quando se dispõe de uma forte teoria gramatical e uma teoria de mudança dela derivada.

Esse conjunto de trabalhos, na maioria escritos por jovens doutorandos, mostra que, mesmo nas condições adversas em que vivemos, foi possível executar um projeto que revela uma parte substancial da gramática brasileira. Foi a realização do sonho acalentado por Fernando, Charlotte e Mary e a ajuda generosa de dois teóricos do exterior, Ian Roberts e David Lightfoot, que souberam respeitar o nosso trabalho, colocando‑se como verdadeiros interlocutores.

Para encerrar esta apresentação, queremos agradecer às agências que direta ou indiretamente contribuíram para tornar possível este livro: à Fundação Humboldt, pela bolsa de visiting scholar na Universidade de Hamburgo, conferida a Fernando Tarallo em 1991; à Fapesp, pela bolsa de visiting scholar na Universidade de Maryland, conferida a Mary A. Kato em 1991; ao Conselho Britânico e ao CNPq pelo patrocínio da vinda ao Brasil (Unicamp) dos professores Ian Roberts em 1990 e David Lightfoot em 1992.

Agradecemos ainda à Unicamp, e suas chefias em vários níveis, que nos deram as condições e nos apoiaram em todos os momentos para tornar possível esta empreitada.


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