Fechar

Por uma bolsa democrática | Raymundo Magliano Filho

POR UMA BOLSA DEMOCRÁTICA

É possível que um leitor distante do mercado de capitais tenha poucas informações a respeito de uma bolsa de valores. Ainda assim, ele certamente sabe que se trata de uma instituição de suma importância. Não à toa, o noticiário constantemente reserva parte de sua grade horária para apresentar como a bolsa reagiu a determinado acontecimento político, econômico ou social. De forma geral, pode-se dizer que praticamente toda questão social, todo assunto presente na sociedade, repercute nessa instituição.

Ainda que tal constatação seja relativamente evidente, é extremamente comum que o público leigo tenha severas dificuldades para compreender a linguagem praticada em uma bolsa de valores, constantemente composta por números e gráficos, e (quase) nada a mais. Apesar da aparente naturalidade que envolve essa observação, é indispensável atentarmos para a construção histórica desse processo. Nas últimas décadas, não só o campo econômico, mas também o ensino nas faculdades de Economia e Administração sofreram uma expressiva matematização de seu conhecimento. O resultado a que chegamos, evidentemente, não é dos melhores. O distanciamento manifestado na própria fala e tato com os outros é um dos fatores nucleares para compreendermos o elitismo que atravessa corredores, salas de reuniões e conselhos deliberativos das bolsas. Além disso, apesar de toda e qualquer bolsa estar intimamente conectada às relações sociais que constituem a sociedade, são raras as ocasiões em que ouvimos alguém discutir e problematizar a função social exercida por essa instituição. Ou seja, paradoxalmente, quanto mais importante essa instituição se tornou para o mundo, mais ela foi matematizada, menos ela foi compreendida e mais ela tendeu a ser considerada um espaço para homens ricos desprovidos de quaisquer preocupações sociais.

A crise de 2008, não por acaso, contribuiu ainda mais para esse desfecho. Não só os erros, vícios e processos de corrupção no mercado financeiro global foram exacerbados (sem que qualquer pessoa tenha sido criminalmente responsabilizada pelo rombo monumental), como também a atitude dos governos nacionais, ao injetarem dinheiro público em algo que mais parecia um cassino descontrolado, levantou sérias dúvidas quanto ao real sentido da democracia representativa tal como a conhecemos. Ora, como explicar a necessidade de líderes democraticamente eleitos destinarem o dinheiro suado do contribuinte para um sistema falido, isolado e blindado frente à participação da sociedade civil?

Para piorar a já delicada situação, a literatura especializada vem enfatizando como as tentativas de regulação propostas desde então simplesmente não tiveram efeito. Cidadãos, investidores, empresários, trabalhadores e políticos parecem continuar caminhando às cegas, enquanto a próxima crise financeira não explode. Enquanto isso, no âmbito da chamada “economia real”, isto é, das atividades que reúnem produção material de bens no setor industrial, a situação é ainda pior. Aqui, manifesta-se um dado profundamente discutido nos últimos anos, qual seja, o descolamento entre finanças e indústrias. Nos últimos 40 anos, enquanto o setor financeiro acumulou lucros exorbitantes e crises reiteradas, o crescimento industrial do mundo (incluindo países desenvolvidos e em desenvolvimento) medido no acúmulo de capital fixo despencou. O caso brasileiro, infelizmente, talvez constitua um dos exemplos mais significativos. O governo do Partido dos Trabalhadores (PT), principalmente, foi o grande responsável por “recomodificar” a economia – isto é, dando ênfase descomunal à produção de grãos para abastecimento do mercado externo, em especial, a China –, fazendo com que o nosso crescimento econômico dependesse cada vez mais do instabilíssimo mercado global de commodities. E até mesmo o público leigo sabe as consequências desse tipo de programa nacional: a quebra da própria nação brasileira, com recessão, desemprego e aumento da dívida pública e privada.

Todos esses dados atingem violentamente a legitimidade das bolsas de valores, em particular, e do mercado financeiro, em geral. Não à toa, o movimento Occupy Wall Street se alastrou pelo mundo, mobilizando principalmente jovens. Isso talvez faça o leitor se perguntar: se as bolsas ainda são manifestamente elitistas, se o mercado financeiro está na raiz da pior crise econômica do mundo desde 1929, se nada vem sendo feito desde então para efetivamente remediar a situação, por que não simplesmente desistir dessas instituições? Por que insistir na defesa de uma “bolsa democrática”, como propõe o ambicioso título deste livro? Essas são perguntas duras, pertinentes e, acima de tudo, legítimas. Para respondê-las, no entanto, será necessário sair da zona de conforto da linguagem técnica da economia e adentrar no pantanoso terreno da função social da bolsa. Ainda que surpreendente para alguns, esse tipo de saída é, na verdade, a própria base a partir da qual Max Weber, o pai da Sociologia, estudou as relações entre bolsa de valores, economia e sociedade.

Assim, este livro que o leitor tem em mãos está dividido em duas partes. Na primeira, são apresentados os materiais teóricos que permitem uma compreensão muito mais rica sobre o significado da bolsa de valores, não só para a economia – como infelizmente ainda é ensinado nas principais faculdades do país –, mas, acima de tudo, para a própria organização da sociedade. Para tanto, nada melhor do que contribuir para a difusão de um texto que até os dias de hoje é profundamente ignorado. Entre 1894 e 1896, Weber escreveu dois ensaios que compuseram um pequeno livro chamado A bolsa. Como o próprio autor salienta, sua intenção era fornecer uma primeira orientação a quem ignora por completo a referida temática. Seu estudo, renunciando a qualquer juízo de valor, buscava fornecer um contraponto àqueles que superficialmente criticavam essa instituição. Vale a pena atentarmos para as palavras do próprio Weber:

A mesma superficialidade, todavia, é também responsável pela perigosa ideia de que uma instituição como a bolsa, simplesmente indispensável a qualquer organização da sociedade que não seja rigorosamente socialista, não passaria de uma associação de conspiradores vivendo da burla e da gatunice, à custa do honesto povo trabalhador, a qual deveria ser, assim, na melhor das hipóteses, destruída e, sobretudo, poderia sê-lo. (Weber, 2004: 57-8)

Como o leitor já pode perceber, nessa primeira parte do livro serão apresentadas reflexões que destoam muito do senso comum, mas que contribuem para a percepção de duas funções sociais da bolsa absolutamente indispensáveis, a formação e fixação de preços. A necessária atuação dos corretores, responsáveis por aproximar as mãos da oferta e da procura, a diferenciação entre bolsas de mercadorias e bolsas de ações, a explicação histórica sobre o surgimento das bolsas como forma de garantir uma segurança maior ao comércio são apenas alguns exemplos dos temas que serão abordados nas próximas páginas. No entanto, outro objetivo fundamental desse “retorno a Weber” está não só em mostrar sua atualidade, mas também seus limites. Evidentemente inserido em seu contexto particular, a Alemanha do final do século XIX, Weber, ao contrapor o modelo britânico de bolsa, plutocrático, ao modelo francês de bolsa, muito mais democrático, diz preferir que a Alemanha siga o primeiro modelo:

[…] a bolsa é monopólio dos ricos. Nada mais insensato do que permitir que se oculte este facto através da admissão de especuladores sem meios e, por conseguinte, impotentes, dando assim a possibilidade ao grande capital de alijar responsabilidades e de se desculpar com aqueles. (Weber, 2004: 99)

Ora, nosso leitor atento já percebeu que nesta passagem encontramos aquele tipo de elitismo ainda presente nas bolsas, e tão criticado. Seria, então, a perspectiva plutocrática uma característica imutável dessas instituições? Estaria toda e qualquer bolsa fadada a se afastar da democracia? É evidente que, já pelo próprio título deste livro, não compartilhamos desse entendimento. Muito pelo contrário, a popularização da bolsa não só constituiu o grande objetivo durante minha presidência à frente da Bovespa, entre 2001 e 2008, como também a minha defesa da reciprocidade entre instituições e sociedade civil1 formam o arcabouço a partir do qual rechaço todo e qualquer elitismo. Dizer isso, no entanto, ainda não é o bastante. Nosso leitor também deve ter percebido que o argumento de Weber para excluir a abertura da bolsa à sociedade civil nutre-se da ideia de que esta seria caracterizada pela presença de “especuladores sem meios e, por conseguinte, impotentes”. Mas qual é o sentido da especulação? Assim como o senso comum tende a equivocadamente observar a bolsa como um mero cassino de ricos, não poderia o “desprezo à especulação” estar baseado em perspectivas equivocadas? Não estaria Weber, compreensivelmente, devido ao seu contexto, preso à identificação entre especulador e apostador?

Para responder a mais essas perguntas, a primeira parte do livro, após a apresentação das contribuições de Weber, terá continuidade a partir das reflexões de outro sociólogo alemão, Urs Stäheli, ainda profundamente desconhecido no Brasil. Stäheli tem como principal objetivo narrar como a especulação foi inicialmente vista como um parasita da economia, de que forma ela procurou se legitimar e com quais argumentos. Como será devidamente enfatizado, desde o século XVII, a área das finanças é objeto de intensa disputa, notadamente nos EUA. As ações que naquele contexto aconteciam na bolsa eram de um ineditismo ímpar e rompiam com o tipo de conhecimento econômico dominante, até então caracterizado por um paradigma material de produção. Ou seja, eram tempos em que a riqueza era medida por bens tangíveis, grandezas observáveis no dia a dia (indústrias, fazendas etc.). No mais, a própria cultura americana, profundamente influenciada pelo protestantismo, tinha no trabalho duro um dos elementos norteadores para a legitimação do lucro.

A então emergente especulação, naturalmente, questionava todas essas premissas. Suas ações não se pautavam por referências externas, mas somente por preços e outros signos, por um processo imaterial. Se isso permitia, por um lado, que alguns autores observassem a bolsa como “o mercado dos mercados”, o grande paradigma da racionalidade econômica pura, por outro, essa autorreferência abstrata – manifestada na famosa ideia de fazer o dinheiro virar mais dinheiro sem qualquer elemento material, a não ser uma máquina – mostrava-se como algo altamente sedutor, uma atividade atraente e especialmente divertida para muitos.

Essa é a razão pela qual a inovação decorrente da especulação foi, num primeiro momento, amplamente criticada. A principal disputa – até hoje observável – dizia respeito à distinção entre speculation e gambling, entre especular e apostar, especulador e apostador. Ora, o apostador também lidava com dinheiro e pagamento, objetivando um retorno financeiro futuro, como qualquer operação econômica. Além disso, durante os séculos XVII e XVIII, os jogos de azar e a figura do apostador eram extremamente populares e mal se distinguiam da especulação. Como será destacado, superar essa identificação entre especulador e apostador, ainda presente em Weber, é algo que só será alcançado no decorrer do século XX.

Com isso, o leitor terá uma abrangente e rica bagagem teórica para compreender a função da bolsa na sociedade, como destacado no início desta introdução. No entanto, a defesa de uma bolsa democrática não diz respeito somente à apresentação de novas ideias. São necessárias novas práticas. É indispensável materializar, transformar em ação esses ensinamentos. Por isso mesmo, a segunda parte deste livro apresenta ao leitor como essas lições teóricas podem assumir uma forma concreta, real. Trata-se de apresentar a experiência da Bovespa como um caso inédito de gestão democrática, que, a partir do entendimento basilar da relação de reciprocidade entre instituições e sociedade civil, conjugou as contribuições de Weber e Stäheli. A Bovespa cumpriu sua função social a partir de uma série de projetos e iniciativas ímpares, inéditas, que buscaram fortalecer, de um lado, a sociedade civil e, do outro, algumas de suas instituições. Além disso, sua abertura à sociedade, isto é, sua popularização no início do século XXI, não só contribuiu significativamente para sua legitimação, como também possibilita, hoje, compreendê-la como um paradigma de gestão democrática, com responsabilidade social e engajamento nacional. A bandeira da educação financeira, seu maior legado, como será demonstrado, é prova de seu maior sucesso institucional e contribuição à sociedade brasileira.

Infelizmente, em tão pouco tempo, muita coisa mudou. A veia democrática e a revolução dos valores que marcaram aquele período definharam. Curiosamente, no mesmo ano em que minha gestão como presidente da Bovespa terminou, em 2008, estourou nos EUA a crise dos subprime, que rapidamente se expandiu e que até hoje assombra os prognósticos sobre o futuro de uma economia financeiramente descontrolada. A associação é inevitável: se as bolsas de outros países seguissem o exemplo da Bovespa, se os princípios democráticos que pautaram as preocupações daquela gestão fossem aplicados e seguidos a longo prazo, teríamos conseguido evitar o martírio de 2008?

Essas são perguntas que, evidentemente, não abordaremos neste livro. Ainda não existem respostas definitivas para isso, já que as próprias causas da crise de 2008 ainda estão em severa disputa entre autores neoclássicos, economistas de filiação monetarista, neokeynesianos e pós-keynesianos, marxistas e seguidores da escola austríaca. Nosso foco, aqui, é outro. Apresentar ao leitor uma visão transformadora sobre a bolsa de valores, sua especial relação com a democracia e suas possibilidades reais de atuação constituem nosso objetivo primordial de contribuir para o diálogo em torno de um tema da mais urgente importância: o futuro econômico, político e social do Brasil.

Nota: 1 “Na medida em que as instituições se consolidam por meio da participação da sociedade civil, elas têm o dever de agir em seu benefício, fortalecendo-a” (Magliano Filho, 2017: 13).


Raymundo Magliano Filho é graduado em Administração pela Fundação Getulio Vargas. Foi presidente da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) por sete mandatos consecutivos, conselheiro do Instituto Ethos, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e de diversas entidades que atuam em níveis nacionais e internacionais. Autor de diversos artigos sobre o mercado de capitais publicados em jornais e revistas, fundou o Instituto Norberto Bobbio, instituição que se dedica a divulgar os conceitos de direitos humanos, democracia e cultura. Pela Editora Contexto, publicou também Um caminho para o Brasil.