Há muita coisa para se aprender por aí. Milhares. Basta uma volta no YouTube e você vai descobrir cursos sobre quase tudo que puder imaginar: finanças, poesia medieval, tricô, como trocar um chuveiro. E muito mais. Nem tudo é fundamental. Nem tudo realmente vale a pena. Mas há coisas que são incontornáveis, ou deveriam ser. Entre as que deveriam ser incontornáveis, mas não o são por muitas razões, pretendo destacar uma ciência específica, que nem mesmo se preocupa muito em ser científica: a Antropologia.
Afinal, o que é a Antropologia? De forma muito resumida, a Antropologia é a forma que a sociedade moderna capitalista encontrou para pensar a diferença. Falo sobre diferenças culturais, sociais, de classe, de gênero, qualquer processo que produza vidas diferentes daquela que era imaginada como uma vida “standard” desde o século XIX: a vida do homem branco ocidental. A Antropologia foi a ciência que deu a esse “homem normal” (que nada tem de normal, claro) as ferramentas para entender as vidas de povos, grupos e pessoas que eram e continuam sendo muito diferentes da dele. Esse conhecimento, de tão eficiente, tão útil para dar sentido a essas outras experiências de vida, acabou transformando o ponto de vista de quem o utilizava.
Com suas ferramentas para pensar a diferença (como os conceitos de cultura, etnicidade, identidade etc.), a Antropologia, subversivamente, apontou uma questão central e crucial: aquilo que entendemos como “vida normal” é uma miragem, em geral impregnada de racismo, preconceito e toda ordem de opressão. Ao pensar a diferença dos outros, a Antropologia não teve alternativa a não ser pensar a diferença de si mesma (das pessoas que a produziam e produzem). E esse pensamento levou a uma crítica do “padrão ouro” das diferenças, à ideia de que tudo e todos deveriam ser medidos em relação a esse normal branco colonizador. A diferença produzida pelo homem branco era apenas mais uma entre milhares de outras, sem qualquer direito a um destaque no cenário da humanidade. A experiência de vida de um índio Yanomami não é menos complexa e densa que a de um executivo de agências de investimento em Nova York.
Essa ideia subversiva da Antropologia a torna absolutamente importante num mundo marcado pelo renascimento brutal da intolerância, margeada pelas várias configurações de um neofascismo que se espalha por todo lado. E no centro desse renascimento da intolerância está justamente a vontade de reconstruir a ideia de uma “vida normal”, melhor e superior a todas as demais. Todo neofascista acha que sua forma de viver a vida é a que conta e as demais são uma ameaça: na Europa imaginam que os imigrantes são uma ameaça às várias culturas nacionais; nos EUA imaginam que pessoas LGBTIQA+ são uma ameaça ao Americam Way of Life; no Brasil esses mesmos idiotas acreditam num fantasma comunista que ameaça a sacrossanta ideia de família. Eu poderiam multiplicar esses exemplos em outras configurações atuais do neofascismo e sua intolerância à diferença, mas acho que já entendemos onde quero chegar.
No dia 16 de fevereiro de 2023, um senador da República, eleito presidente de uma comissão do Senado para investigar a situação dos Yanomami, frente ao genocídio que assistimos ao vivo em pleno século XXI, afirmou candidamente que a cultura desses povos é “totalmente primitiva”. Ainda esse ano, o governador de Roraima afirmou que “Eles (os indígenas) têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”. Essas e outras falas poderiam se elencadas aqui em toneladas e elas têm sempre algo em comum, a defesa de alguma “vida normal” que os Outros, esses incontroláveis, não respeitam. Como podem os indígenas não viverem como nós? Essa é a pergunta que sustenta a intolerância, pois pressupõe que nosso modo de vida é o que há de melhor e todos deveriam se abrigar nele. Essa pergunta não dá espaço para a diferença.
É por isso que a Antropologia continua sendo importante como instrumento de desnaturalização, crítica e força contra a intolerância. É a Antropologia que, já no final do século XIX, questionou esse privilégio epistêmico que a sociedade ocidental se confere, a de se imaginar como “o exemplo exemplar”. Não, não há “vida normal”, há vidas normais no plural e em milhares de outras configurações que nós precisamos entender, e não combater. E a Antropologia ainda é o melhor instrumento para entender essas diferenças e resistir ao racismo e à intolerância. A Antropologia que foi criada num contexto colonial e depois, quando apropriada pelos povos “diferentes”, virou a principal arma contra a intolerância. Ela, que desde os trabalhos de Franz Boas na virada do século XIX, aprendeu a duvidar das noções de normalidade, evolução, primitivismo, pureza e muitas outras ainda utilizadas pelos ideólogos da intolerância (os milhares de neofascistas do mundo).
Aprender Antropologia hoje em dia é um ato político de resistência à intolerância.
Igor José de Renó Machado é antropólogo, formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (graduação, mestrado e doutorado) e é professor titular do Departamento de Ciências Sociais e da pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem publicado livros sobre temas diversos, com destaque para o tema das migrações, além de livros didáticos para o ensino médio.
Quando você se vê perdida, um tanto reflexiva, sobre a escolha de ter trilhado antropologia como caminho de estudo e sustento e da de cara com esse texto você respira e diz ” fiz a escolha certa” .
Texto perfeito e extremamente inteligente. Machado apresenta a Antropologia enquanto uma ciência viva, capaz de apontar caminhos rumo à desnaturalização dos mais incômodos preconceitos e intolerâncias que nos cercam a todo instante.
Uma leitura urgente e necessária.