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A atualidade do imperialismo | João Fábio Bertonha

Observar o uso e o desuso das palavras é uma ótima forma de compreender as mudanças na História. Até umas poucas décadas atrás, o termo “impérios” era de uso comum, já que os vários impérios europeus ainda existiam e as lutas pela independência nacional, em oposição a eles, estavam ocorrendo na África e na Ásia, especialmente. Do mesmo modo, havia toda uma discussão, dentro do marxismo especialmente, sobre o imperialismo, o seu significado na história do capitalismo e como organizar as periferias do mundo para o seu combate.

A partir da virada do milênio, grosso modo, o uso dos termos “impérios” e “imperialismo” praticamente desapareceu da mídia e do debate político, a não ser em alguns espaços restritos e delimitados. Haveria, em princípio, boas razões para isso: resta apenas um Estado no mundo que se denomina império, o Japão, e o mundo globalizado e interligado do século XXI teria abandonado o mundo dos impérios. A democracia, o capitalismo liberal e o livre fluxo de capitais e bens teriam finalmente tornado uma das instituições humanas mais antigas, os impérios, obsoletos e sem função. Economistas, cientistas políticos, juristas ou sociólogos, para não falar dos governantes, podiam agora esquecer desses termos e apenas os historiadores, presos ao passado, seriam os únicos que ainda os utilizariam.

A atualidade do imperialismo | João Fábio Bertonha

É sempre tentador, e até gratificante, imaginar que as gerações vivas foram bem-sucedidas onde as anteriores falharam. Tivemos dezenas de impérios, em todos os continentes, dentro de um período de milhares de anos e agora, finalmente, esse resto do passado teria sido eliminado em favor de um mundo melhor. A grande pergunta que fica, contudo, é simples: será isso verdade?

Para respondermos a essa questão, devemos pensar, em primeiro lugar, sobre o que é um império. Em que pese as imensas diferenças entre eles, uma definição mínima pode ser elaborada: um império é um Estado com uma grande extensão territorial e capaz exercer a soberania sobre inúmeros povos, culturas e nações, canalizando recursos econômicos e financeiros para a seu centro através de um elaborado sistema administrativo, de transportes e comunicações. O império também deve ser capaz de exercer o monopólio da força dentro do seu território e conter as ameaças que viriam de fora. Ele legitima o seu poder a partir de valores universais, normalmente ligados à religião, e tem alguma capacidade assimilatória, de forma a de integrar ao menos parte dos dominados a nova ordem.

Nos tempos modernos, a transferência de recursos do centro para a periferia se deu, habitualmente, através de vários mecanismos. O primeiro é a expropriação direta, ou seja, obrigar os habitantes dos territórios conquistados a ceder alimentos, metais preciosos, minerais ou rendas tributárias pela força. O segundo é a expropriação das terras e a eliminação física dos povos originários, de forma que os habitantes do centro do império possam colonizar e expandir o próprio território nacional. O terceiro, por fim, se dá pela exploração informal, que se baseia na imposição de um sistema comercial e financeiro que drena os recursos das áreas sob controle para o centro do sistema.

Nos dias de hoje, os impérios como tal não existem mais e, como visto, o próprio termo entrou em desuso. No entanto, será que não podemos constatar a existência, ainda hoje, de impérios e sistemas imperiais, mesmo que sob outro nome? A exploração direta hoje é pouco comum, assim como a expropriação de terras. Os impérios informais, contudo, continuam a existir e talvez com mais força do que nunca.

A União Europeia, por exemplo é um império informal que se diferencia dos outros por prometer o desenvolvimento equilibrado de todos os que nela se integrarem, mas que também canaliza recursos da África e do Oriente Médio, assim como das próprias periferias europeias, para o seu centro, na Europa Central e na Alemanha. Já a Rússia quer recriar e revitalizar o império perdido em 1991 e está agora em uma luta por conter os rivais e/ou se expandir na Ucrânia, com as tristes consequências que todos vemos. Já a China avança pelo mundo, promovendo sua cultura e ampliando seu comércio e vínculos financeiros, mas claramente construindo seu espaço imperial, o qual poderá, ou não, se converter em hegemônico nas décadas a seguir.

O maior império, contudo, continua a ser o americano. Graças à vitória na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria, os Estados Unidos controlam militarmente os “espaços comuns” da Terra, como os oceanos e o espaço. Graças a isso, eles se tornam o centro do sistema e emitem a sua moeda de referência, o dólar. Dado o seu controle do sistema comercial e financeiro global, eles mantêm um mecanismo pelo qual o resto do mundo envia, voluntariamente, seus produtos e seus superávits comerciais para os Estados Unidos para obterem dólares, os quais, por sua vez, são em boa medida reinvestidos no próprio país, financiando o seu déficit público e comercial. Esses recursos permitem a manutenção da qualidade de vida nos EUA e do seu próprio poder militar, que pode funcionar sem a necessidade de taxar em excesso seus próprios cidadãos. Um privilégio que só um império pode ter.

Até o presente momento, todos os candidatos a império – russo, europeu e chinês – ainda funcionam dentro da lógica  do império hegemônico, o americano. A Europa deu sinais, nesse último ano, de uma reacomodação dentro do sistema americano, ou seja, de ter abandonado as pretensões de independência que todo império ambiciona: a União Europeia lentamente se subordina à Otan. Os russos entraram em conflito direto com o poder hegemônico e ficou evidente que eles serão ou derrotados pela aliança entre a Europa e os Estados Unidos ou assimilados, como sócios menores, em um império chinês. A China, por sua vez, é a maior candidata a formar um novo espaço imperial. Por enquanto, esse espaço ainda funciona pelas regras americanas, mas pode muito bem se tornar algo a parte nas décadas a seguir, inclusive com outra moeda de referência, o yuan. Também fica a pergunta se a China, cujas tradições imperiais não são as mesmas do Ocidente, construirá um império nos mesmos moldes do americano ou se terá características diversas. O que parece inevitável é que a China, se realmente se tornar um novo império, seguirá os passos dos anteriores e canalizará recursos – alimentos, minérios, energia – para o centro.

O Brasil foi criado dentro de um império, o português, e só sobreviveu à nova era de expansão imperial no século XIX graças à proteção dos impérios britânico e americano. O preço a pagar, contudo, foi a subordinação econômica, financeira e estratégica. Hoje, o país está no meio do caminho entre continuar a ser parte do espaço americano ou adentrar o futuro espaço chinês, sendo a grande questão se será capaz de ao menos reter alguma autonomia e/ou um projeto próprio de desenvolvimento.  De qualquer forma, talvez seja um bom momento para nos recordarmos que os impérios e os imperialismos não morreram e que lidar com eles é inevitável. Talvez chegue um momento na História em que os impérios se tornem efetivamente algo do passado, mas esse momento ainda não chegou, ao contrário do que a mídia e o senso comum parecem indicar.


João Fábio Bertonha é professor da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e pesquisador do CNPq. Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e livre-docente em História pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de vários livros e artigos, publicou, pela Editora Contexto, Itália: presente e futuro, Os italianos, Patton e Os canadenses.

Agora em março de 2023, lança Imperialismo. Obra que destrincha as diferentes facetas e os diversos estágios do imperialismo e problematiza seus efeitos sob uma perspectiva global, ressaltando a voz dos dominados e a de outros atores na Ásia, na África e na América Latina.

O livro, que está disponível em nosso site, faz parte da coleção Temas Fundamentais, que é um projeto irmão da coleção História na Universidade. Sua proposta é focar em eventos mais específicos, porém igualmente essenciais aos estudos históricos e à formação de todo historiador. Suas obras apresentam momentos definidores da História de forma sucinta, didática e clara, sem deixar de lado a qualidade conceitual e teórica. Escritos por pesquisadores especialistas em cada assunto, oriundos das principais universidades do país, os livros são voltados para estudantes, professores de História e todos aqueles que desejam entender os acontecimentos que formaram nossa sociedade.

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