A Sintaxe é a área da Linguística que investiga como as palavras são organizadas de modo a formar frases em uma língua natural, como, por exemplo, o português, a Libras, o karajá, o espanhol ou o inglês. Por isso, costumamos dizer que o domínio mínimo da análise de um sintaticista é limitado pela palavra – investigar o comportamento de elementos menores do que um item lexical é tarefa de um morfólogo ou de um fonólogo (acerca dos componentes da gramática diferentes da sintaxe, veja os demais livros da coleção “Para Conhecer”, como, por exemplo, Para conhecer fonética e fonologia, Para conhecer morfologia e Para conhecer semântica). Por sua vez, o domínio máximo de investigação em Sintaxe costuma ser a frase, muito embora existam sintaticistas que estudem também as relações entre frases, conforme mostraremos nos capítulos finais deste livro. De qualquer maneira, conhecer sintaxe é, em geral, pesquisar fenômenos gramaticais que acontecem nos limites entre a palavra e a frase.
Quando falamos ou escrevemos, utilizamos as palavras de nossa língua para organizarmos nossas ideias em sequências sonoras ou escritas estruturadas e ordenadas. Não pronunciamos nem escrevemos palavras de maneira aleatória na cadeia de fala ou de escrita. Com efeito, a articulação entre palavras numa frase é controlada por regras e princípios básicos de ordenação e de concordância. Por exemplo, uma sequência arbitrária de palavras, como se vê em (1), não resulta numa frase válida em língua portuguesa, ainda que todos os itens dessa pseudofrase façam parte do repertório lexical de nossa língua.
(1) *Amigos Maria João os da o conhecem.
Conforme notação corrente em teoria linguística, utilizamos neste livro o asterisco para indicar uma sequência sintaticamente malformada na língua. |
Para que (1) se torne uma frase legítima em português, é preciso ordenar essa sequência de palavras de uma maneira muito específica. Por exemplo: nessa língua, artigos devem preceder linearmente os substantivos. Desse modo, são aceitáveis as sequências [os amigos], [a Maria], [o João], mas não as cadeias *[amigos os], *[Maria a], *[João o]. Além disso, numa dada frase, arranjos de palavras como [os amigos], [da Maria] e [o João] devem ser concatenados entre si na forma de constituintes ordenados, ou seja, devem ser dispostos lado a lado sob certas limitações estruturais, do contrário o resultado será novamente uma sequência de palavras inaceitável na língua. É por essa razão que (2) continua sendo uma estrutura sintaticamente malformada em português, apesar de a regra sobre o ordenamento entre artigo e substantivo estar aqui sendo preservada.
(2) *Os amigos da Maria o João conhecem.
Todas as línguas naturais possuem um padrão básico para a disposição linear dos constituintes de uma frase. Em português brasileiro (PB), esse padrão é manifestado na ordenação sujeito → verbo → complemento. Ou seja, sempre que temos, em nossa língua, frases com esses três constituintes, eles normalmente aparecem nessa ordem – com exceção dos contextos de ênfase ou de contraste, que demandam outro tipo de linearização. Na sequência em (2), a ordenação básica do português foi violada sem que se tratasse de algum contexto especial. É essa violação que dispara a sensação de inaceitabilidade da frase. Repare, na representação sintática de (2), feita em (3a) a seguir, que essa frase possui constituintes ordenados de maneira diferente do que se vê em (3b). É somente nesse último caso que, em acordo com o padrão frasal do PB, o sujeito antecede o verbo, que é sucedido por seu complemento.
(3) a. *[Os amigos da Maria]sujeito [o João]complemento [conhecem]verbo.
- [Os amigos da Maria]sujeito [conhecem]verbo [o João]complemento.
Desvendar as regras e os princípios que controlam a formação de frases nas diferentes línguas humanas é o principal objetivo da pesquisa em Sintaxe. Nesse empreendimento científico, a ordenação linear de palavras e de constituintes é apenas um fenômeno entre muitos outros na agenda de trabalho de sintaticistas no Brasil e no restante do mundo. De fato, as propriedades sintáticas das línguas naturais são diversas e complexas. É, inclusive, possível que um fato sintático se manifeste em interface com outro componente da gramática de uma língua. Por exemplo, a concordância é uma área de interação entre Sintaxe e Morfologia conhecida como Morfossintaxe. Um sintaticista deve estar atento a esse ponto de interface porque restrições de natureza morfossintática podem limitar a composição de estruturas frasais tanto quanto o podem os fenômenos puramente sintáticos. Repare como (4) também não é uma frase bem formada em português, apesar de não haver nela nenhuma violação das regras de ordenação linear da língua.
(4) *[O amigos do Maria]sujeito [conheço]verbo [as João]complemento.
O que falta para (4) ser considerada uma frase gramaticalmente aceitável em PB é, justamente, a concordância entre os elementos da frase. Com efeito, em todas as modalidades do português, artigo e substantivo devem manifestar os mesmos traços de gênero. Assim, por exemplo, [João], sendo um substantivo masculino, não pode ser antecedido por um artigo feminino como [a]. Por sua vez, os traços de número não são, em PB, compartilhados entre artigo e substantivo de maneira tão rígida como os de gênero. Na verdade, uma das mais evidentes características do português do Brasil é a variabilidade das regras de concordância de número em constituintes nominais e verbais. Nas modalidades da língua consideradas não padrão, a expressão do plural em sequências compostas por artigo e substantivo se dá normalmente apenas no artigo, porém não no substantivo, que permanece em sua forma de singular, sem, portanto, manifestação de concordância: [os amigo]. Já nas modalidades padrão, sobretudo em gêneros formais e escritos, o número plural é quase sempre marcado nas duas palavras, veiculando, assim, concordância: [os amigos]. Para um sintaticista, o interessante nesse caso é identificar as regras subjacentes ao uso variável da concordância verbo-nominal no PB. Por exemplo, em nenhuma modalidade dessa língua a expressão do plural é feita somente no substantivo e não no artigo: *[o amigos]. Tal restrição, dentre outras, revela que a concordância de número não é estabelecida de modo aleatório pelos falantes brasileiros, mas, antes, é também regida por regras e princípios.
Para uma discussão sobre as modalidades da língua portuguesa no Brasil, veja Para conhecer sociolinguística e Para conhecer norma linguística, desta coleção. O PB é uma língua fortemente marcada pela concordância verbal e nominal variável. Embora nem sempre estejam conscientes disso, os falantes das variedades padrão da língua também produzem e compreendem normalmente sequências nominais sem concordância, como [Os amigo da Maria], [Minhas nota] etc., bem como sequências verbo-nominais sem concordância, como [Os amigo de Maria conhece…]. |
A comparação de fenômenos sintáticos entre diferentes línguas é especialmente importante para um sintaticista. Com base no método comparativo, ele poderá descobrir como certos parâmetros sintáticos ou morfossintáticos se manifestam ou não da mesma maneira em idiomas distintos. Por exemplo, em inglês, o número plural na sequência [artigo + substantivo] é expresso num padrão estrutural sem concordância oposto ao encontrado no PB não padrão. Naquela língua, o plural deve ser marcado apenas no substantivo e não no artigo: [the friends] versus *[thes friend]. Já no francês falado padrão, o plural sem concordância se expressa somente no artigo, mas não no substantivo – tal como ocorre nas variedades não padrão do PB. Noutras línguas, como nos diferentes dialetos do chinês, um fenômeno como a concordância de gênero e de número simplesmente não existe. Nesses casos, a distinção entre masculino e feminino ou entre singular e plural é feita no componente pragmático – e não na interação da sintaxe com a morfologia. Conhecer as diferenças sintáticas entre as línguas é importante para compreendermos a variabilidade da sintaxe dentro de uma mesma língua específica.
O sintaticista é, portanto, um estudioso que se dedica a observar, descrever e explicar as regras e os princípios gramaticais que subjazem aos fenômenos sintáticos das línguas naturais, tais como ordem e concordância. O propósito do presente volume da coleção “Para Conhecer” é apresentar ao leitor os fundamentos do fazer desse tipo de linguista, suas ferramentas básicas de análise e suas opções teóricas e metodológicas mais produtivas.
Se nosso objetivo for alcançado, este livro servirá a estudantes e professores universitários como uma introdução teoricamente “neutra” ao estudo da Sintaxe. Isto é, este volume iniciará o leitor aos principais temas da Sintaxe sem se limitar a nenhuma teoria sintática específica. Nosso objetivo aqui é apresentar os conceitos-chave dos estudos sintáticos, revisar a nomenclatura sobre funções sintáticas que encontramos nas gramáticas normativas tradicionais e despertar a curiosidade linguística do leitor para a investigação de algumas propriedades sintáticas da língua portuguesa. É verdade que parte do que apresentaremos nos próximos quatro capítulos será influenciado pelos conceitos basilares da Sintaxe Normativa tradicional, da Sintaxe Gerativa e da Sintaxe Funcional. Não obstante, em nenhum momento do livro exigiremos do leitor qualquer conhecimento prévio sobre essas abordagens linguísticas.
Antes de passarmos propriamente ao início deste livro, devemos registrar aqui nosso agradecimento a algumas pessoas: o professor Renato Basso (UFSCar) e a professora Izete Coelho (UFSC) leram todo o manuscrito e colaboraram enormemente com a redação final do trabalho; Luciana Pinsky, nossa editora, foi paciente e receptiva ao nosso projeto, mesmo quando decidimos alterar significativamente toda a estrutura e grande parte do conteúdo do livro; os professores Sergio Menuzzi (UFRGS), Humberto Menezes (UFRJ) e Marcus Maia (UFRJ), nossos orientadores de pós-graduação e possivelmente os principais “culpados” por trabalharmos com Sintaxe hoje, inspiram nossas investigações cotidianas sobre a linguagem e são os responsáveis indiretos por grande parte do conteúdo deste livro; por fim, mas não com menos importância, todos os nossos alunos, que ao longo de décadas vêm nos forçando a ser cada vez mais precisos e, ao mesmo tempo, cada vez mais didáticos na tarefa nada fácil de ensinar Sintaxe de uma maneira cientificamente adequada. Todas as inconsistências no texto, no entanto, são de nossa inteira responsabilidade.
Eduardo Kenedy é doutor e mestre em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e licenciado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Na UFF, é professor do Departamento de Ciências da Linguagem e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, filiado à linha de pesquisa Teoria e Análise Linguística, com ênfase em Psicolinguística e Linguística Gerativa. Fundou o Laboratório do Grupo de Estudos e Pesquisas em Linguística Teórica e Experimental (Gepex-UFF), atuando como orientador de trabalhos sobre processamento linguístico, sobre Sintaxe Gerativa e sobre Psicolinguística Translacional para a Educação. Em 2013, recebeu da Faperj o prêmio Jovem Cientista do Nosso Estado. É bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq desde o ano de 2017. Pela Editora Contexto, publicou Curso básico de linguística gerativa (2013), Sintaxe, sintaxes: uma introdução (2015) (co-organizado com Gabriel de Ávila Othero) e Para conhecer Sintaxe (2018), além de ser o coautor nas obras Manual de linguística (2008) e Psicolinguística, piscolinguísticas: uma introdução (2015).
Gabriel de Ávila Othero é professor do Departamento de Linguística, Filologia e Teoria Literária e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tem graduação em Letras Português e Letras Português/Inglês pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, 2001); é especialista em estruturas da língua portuguesa pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra, 2002); concluiu seu mestrado (2005) e doutorado (2009) em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); e fez pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2009-2010) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 2017-2018). Também é editor da Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL (juntamente com Cassiano R. Haag e Cândida M. Selau) desde 2003. É autor, pela Contexto, dos livros Teoria X-barra: descrição do português e aplicação computacional (2006) e Sintaxe, sintaxes: uma introdução (juntamente com Eduardo Kenedy, 2015) e Para conhecer sintaxe (2018). Atua nas áreas de Sintaxe (e sua interface com Semântica, estrutura informacional e prosódia), gramática do português brasileiro, Teoria da Otimidade e Linguística Computacional.