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Os Alemães
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Os Alemães | Vinícius Liebel

Os AlemãesOs alemães? Todos sabemos como eles são. Ou achamos que sabemos… Para alguns de nós, eles são sisudos, fechados e até levemente arrogantes. Para outros, são pontuais, preparados e capazes. Os que gostam de comer bem dizem ser difícil apreciar um povo que se satisfaz com uma salsicha e um copo de cerveja. Por outro lado, como não amar um povo que nos deu Bach e Beethoven, Goethe e Einstein (embora este fosse judeu e tenha tido que sair da Alemanha para não ser morto em campos de extermínio)? Há até quem defenda que vale mais a pena ter um alemão como sócio ou colega de trabalho do que como amigo. São confiáveis, mas não divertidos.

Dizem que eles são o oposto do espontâneo. Tudo tem que ser previsto, planejado. E isso se reflete até na forma como enxergam a educação: com apenas 9 anos, a depender do seu desempenho escolar, a criança já será direcionada ao ensino regular, com vistas a um curso superior, ou ao ensino mais técnico.

Planejam. E, o que é melhor, cumprem o plano desenhado (o que pode parecer óbvio, mas nós, brasileiros, nem sempre associamos o planejamento com a consequência imediata que seria seguir o plano). São pontuais, conhecidos como trabalhadores dedicados, costumam ter profundo respeito pela autoridade. Esse respeito beira o anedótico: meio-dia de sábado. Ruas vazias de automóveis. Muitos pedestres se dirigem a uma grande feira que acontece anualmente na cidade de Frankfurt. O semáforo fecha, mas, como não há carros na rua, os pedestres seguem na rua. Mas não todos, só os estrangeiros. Os alemães esperam, pacientemente, o verde. Mas esperam mesmo?

Não é exatamente o que dizem os próprios alemães: 71% deles confessam desrespeitar com frequência o sinal vermelho quando estão a pé e não veem problema algum nisso. Os números diminuem bastante quando eles estão de carro (6%) ou de bicicleta (22%). Sim, alemães são malucos por estatísticas.

Para todos os assuntos que possam ser contabilizados de alguma forma, eles têm uma estatística. Qual a probabilidade de um alemão ter um gato em casa? A resposta é 22%, contra 17% de chances de ter um cão e 4% de ter um aquário. Esses números falam muito mais sobre a necessidade dos alemães de terem informação, de transformarem seus dados – quaisquer dados – em números; e terem, portanto, certo controle sobre o mundo a sua volta. Por aí se vê que é arriscado ter de confiar na imagem, por vezes estereotipada, que formamos dos alemães.

Quem é esse povo, afinal, que adora números, mas que também abriga alguns dos mais influentes filósofos do mundo, além de compositores e escritores universalmente admirados? Como sua história peculiar de unificação tardia, nova divisão no pós-guerra e reunificação em 1990 ajudou a definir sua identidade como pertencentes a uma nação?

É muito difícil encontrar alguém que não tenha uma ideia sobre os alemães. Para os epicuristas, a Alemanha significa cerveja. Para outros, uma economia forte. Há aqueles que lembram imediatamente os carros, a Volkswagen, BMW, Mercedes-Benz, e outros ainda pensam em esportes, no Bayern, Adidas, Schumacher.

Todas essas Alemanhas estão aqui. Mas conheceremos também um país – e um povo – mais complexo e diverso. Para começar, sua história não encontra paralelos entre seus vizinhos europeus. Fruto da união de vários territórios distintos, a unificação do país veio a ferro e fogo, sob a liderança prussiana, apenas em 1871. O que não quer dizer que os alemães não existissem antes disso. Eles já possuíam uma espécie de identidade cultural, bastante centrada na língua alemã, e a ideia de que faziam parte do mesmo povo. Afinal, eram todos herdeiros dos germânicos, que seguraram o ímpeto conquistador dos romanos fazendo com que fixassem as fronteiras de seu império só até as margens do rio Reno. Eram também herdeiros do Império Carolíngio e do Sacro Império Romano-Germânico, as duas primeiras grandes estruturas que uniram esses territórios em alguma forma de unidade política.

A fragmentação territorial, aliada à base linguística e cultural comum, fez com que a identidade constituída pelo povo alemão fosse das mais complexas. A diversidade do território, antes de levantar muros intransponíveis ou divisões inconciliáveis, produziu orgulhos compartilhados. Goethe, nascido na cidade livre de Frankfurt, viveu alguns de seus melhores anos na cidade de Weimar, então centro de um ducado (Sachsen-Weimar-Eisenach). Seus livros, em particular Os sofrimentos do jovem Werther e Fausto, são festejados em todo o mundo como algumas das maiores obras em língua alemã. E claro que ele não é uma exceção: Schiller, Heinrich Heine, Herder, Lessing e muitos outros o acompanham nesse panteão dos grandes escritores alemães. No sentido figurado, mas também no literal. Em 1842, 30 anos antes da unificação, portanto, o rei bávaro Ludwig I construiu, na região de Regensburg, um edifício destinado a ser uma homenagem permanente aos grandes nomes da cultura alemã. Esse panteão alemão foi batizado de Walhalla, uma apropriação da mitologia germânica, o local onde Wotan, o deus Odin na versão nórdica, recebia os guerreiros de maior destaque para um eterno banquete. Em sua versão contemporânea, a morada dos valorosos abriga bustos de pintores, generais, reis, políticos, compositores, historiadores e filósofos, pessoas que construíram e definiram, com suas ações e obras, o que é “ser alemão”. E, como uma prova de que essa é uma definição em constante transformação, o Walhalla abriga também bustos de pessoas muito mais próximas de nosso tempo, como Albert Einstein ou Konrad Adenauer.

Se a história alemã apresenta capítulos e personagens fascinantes, também tem passagens sombrias e extremamente violentas. O militarismo, o nacionalismo e o antissemitismo que se desenvolveram no país a partir de sua unificação colocaram o país no caminho de duas guerras mundiais, genocídios e um governo totalitário nazista que cortou fundo na carne de sua própria população. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o país acabou separado entre comunistas e capitalistas, e um muro dividiu o coração do país. Assim, menos de um século depois da unificação, a Alemanha já estava novamente dividida.

Quem visita hoje a Alemanha vê um país que é a síntese de tudo isso, e que se esmera em sê-lo. Mesmo suas maiores manchas históricas são parte constante de seu ser. Quando se procura pelo “típico alemão”, o senso comum lança ideias gerais (“pontuais”, “frios”, “distantes” etc.). Aqueles que têm contato com a ciência ou a Academia alemã tendem a vê-los como demasiado teóricos, abstratos. O próprio Goethe chegou a afirmar que os alemães têm o dom de tornar as ciências inacessíveis. Mas, em verdade, todas essas características estão ligadas a uma introspecção, a uma reflexão constante sobre o mundo à sua volta – e sobre sua própria história. Como o leitor poderá acompanhar nas páginas seguintes, isso leva ao desenvolvimento de uma consciência muito particular, a uma defesa da democracia e dos direitos humanos, a um senso de responsabilidade – histórica e para com o mundo de hoje – que diferencia o povo alemão frente a seus vizinhos.

Donos de uma história única, marcada por luzes e trevas, os alemães seguem deixando sua marca no mundo; na economia, nas artes e na ciência. Uma ação cada vez mais refletida e responsável em vários aspectos pode ser também apontada como uma característica desse povo, especialmente após a reunificação de 1990 e o surgimento de uma nova Alemanha. Isso não os exime de culpas ou de responsabilidades por suas ações – atuais ou históricas –, mas denota a tendência a uma consciência de seu lugar no mundo. Entender como e por qual razão isso aconteceu é o principal foco deste livro.


Vinícius Liebel é historiador e pesquisador da Europa contemporânea (séculos XIX e XX) e tem se dedicado especialmente à História política e cultural da Alemanha. Em livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, seu foco tem sido a primeira metade do século XX, a ascensão do nazismo, do antissemitismo, do totalitarismo e os dois conflitos mundiais. Formou-se em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e possui doutorado em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim (FU-Berlin). Pela Editora Contexto, publicou Possibilidades de pesquisa em história e Os Alemães.