Aquela pessoa é escritora, eis o que dizemos. Não. Ela é reescritora. Algumas correções precisam ser feitas logo no início da conversa. Caso contrário, ela desanda. Toma rumos indesejáveis. E o leitor fica à mercê de uma negligência que vai lhe trazer prejuízos.
Nenhum texto, nem aqueles assinados por quem já convive com um Nobel de Literatura, um Pulitzer, nasce perfeito. Resultado de um parto trabalhoso, o texto chega como o bebê mais desejado do mundo. Vale celebração. Mas ele está longe de ser alguma coisa pronta – ouvi dizer que, no final das contas, recém-nascido tem “cara de joelho”. Será que pega mal repetir, novamente, a história de Hemingway? Incomoda mostrar, outra vez, que para considerar satisfatória a redação do último capítulo de Adeus às armas, ele, jornalista e Prêmio Nobel de Literatura, o reescreveu 39 vezes? Peço ao leitor que me perdoe pelo risco de ser inconveniente. Mas, como em Lucas, o evangelista, se eu me calar, as pedras gritarão. Não quero pecar pela falta de transparência.
Verdade é que, sobretudo em nosso tempo, quando vivemos acuados pelas redes sociais, falta-nos algo essencial para essa prática. Falta-nos a solidão, indispensável. Na sua obra A arte do tempo, Jean-Louis Servan-Schreiber dedica um pequeno trecho à questão: “Tempo da solidão – à exceção das viagens profissionais, no ambiente inspirador de hotéis de luxo, quando gozamos momentos de solidão? Como saber o que temos a nos dizer se nunca ficamos sozinhos? Poucos apreciariam levar uma vida solitária, mas quem não gostaria de um pouco de privacidade?”
Sim, para escrever, precisamos de privacidade. Não há de ser aquela que teríamos num mosteiro trapista, encravado em algum lugar perdido do planeta. Mas seria de bom tamanho a possibilidade de rever e rever, e rever, e reler aquele texto, até que ele revelasse todo o seu potencial de comunicação.
Diante da pergunta “Costuma refazer poemas antigos?”, transcrita no livro Viver & Escrever, de Edla Van Steen, o poeta João Cabral de Melo Neto respondeu: “Quase nada. No Poesias completas eliminei vários poemas do primeiro livro. O Rio, que confesso ser talvez o meu livro predileto, eu mexi bastante depois de publicado. O Rio foi escrito às pressas (para um concurso do IV Centenário de São Paulo) e não saiu como eu queria.”
Eliminar um poema, mexer bastante num texto, isso é trabalho de ourivesaria. Não se faz em meio a um turbilhão de exigências barulhentas à nossa volta. O processo demanda silêncio. Solidão na dose exata. Não por acaso, Franz Kafka adverte para o fato de que escrever significa abrir-se em demasia, enquanto conclui que nunca há solidão o bastante ao redor de quem escreve. Isso, além de destacar que nunca o silêncio é demais, e que até mesmo a noite se revela muito curta.
Nada em exagero. Quando convido o filósofo e escritor francês Voltaire para a conversa, ele completa o pensamento de Kafka afirmando que “A mais feliz das vidas é uma solidão atarefada.” Para o escritor, “a mais feliz das vidas” é aquela na qual ele pode escrever e reescrever até 39 vezes o seu texto, se preciso – e quando é que não precisa?
“Escrever é uma percepção do espírito. É um trabalho ingrato que leva à solidão”, disse o poeta francês Blaise Cendrars. A um só tempo, escrever leva a certo estado de solidão, mas antes pede que haja solidão para desempenhar a tarefa de produzir. Uma coisa provoca a outra. Uma coisa se alimenta da outra.
O artista da palavra não escreve. Ele produz um trabalho artesanal, obra de ourivesaria, minuciosa, e entrega ao leitor o fruto da sua paixão. É assim que eterniza suas ideias, enquanto contribui com a raça humana. Solitariamente escrevendo. Reescrevendo. Sempre. Este é o seu ofício. Esta é a sua missão.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]