O trabalho escravo é uma grave violação de direitos humanos que restringe a liberdade do indivíduo e atenta contra a sua dignidade. O fenômeno é distinto da escravidão dos períodos colonial e imperial, quando as vítimas eram presas a correntes e açoitadas no pelourinho. Hoje, o trabalho escravo é um crime expresso no Código Penal e pode ser constatado a partir de qualquer um dos seguintes elementos: trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívida e condições degradantes.
Artigo 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalhando, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena- reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem:
I- cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º. A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra a criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor etnia, religião ou origem.
O trabalho escravo não é caracterizado por meras infrações trabalhistas. Ele é um crime contra a dignidade humana. Numa relação de trabalho, a constatação de qualquer um desses elementos é suficiente para configurar trabalho escravo:
– TRABALHO FORÇADO: O indivíduo é obrigado a se submeter a condições de trabalho em que é explorado, sem possibilidade de deixar o local seja por causa de dívidas, seja por ameaça e violências física ou psicológica. Em alguns casos, o trabalhador se encontra em local de difícil acesso, isolado geograficamente.
– JORNADA EXAUSTIVA: Expediente desgastante que vai além de horas extras e coloca em risco a integridade física do trabalhador, já que o intervalo entre as jornadas é insuficiente para a reposição de energia. Há casos em que o descanso semanal não é respeitado. Assim, o trabalhador também fica impedido de manter vida social e familiar.
– SERVIDÃO POR DÍVIDA: Fabricação de dívidas ilegais referentes a gastos com transporte, alimentação, aluguel e ferramentas de trabalho. Esses itens são cobrados de forma abusiva e descontados do salário do trabalhador, que permanece cerceado por uma dívida fraudulenta. Em muitos casos, todo o seu salário é simplesmente retido, assim como os seus documentos pessoais.
– CONDIÇÕES DEGRADANTES: Um conjunto de elementos irregulares que caracterizam a precariedade do trabalho e das condições de vida sob a qual o trabalhador é submetido, atentando contra a sua dignidade, como destacamos abaixo:
O governo federal brasileiro assumiu a existência do trabalho escravo contemporâneo perante o país e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1995. Assim, o Brasil se tornou uma das primeiras nações do mundo a reconhecer oficialmente a ocorrência do problema em seu território. De 1995 até 2016, mais de 52 mil trabalhadores foram libertados de situações análogas a de escravidão em atividades nas zonas rural e urbana.
No Brasil, 95% das pessoas submetidas ao trabalho escravo rural são homens. As atividades para as quais esse tipo de mão de obra é utilizado exigem força física, por isso os aliciadores buscam principalmente homens e jovens. Os dados oficiais do Programa Seguro-Desemprego registrados de 2003 a 2018 indicam que, entre os trabalhadores libertados, 70% são analfabetos ou não concluíram nem o 5º ano do Ensino Fundamental. Os trabalhadores rurais libertados são, em sua maioria, migrantes internos, que deixaram suas casas com destino à região de expansão agrícola e se empregaram em atividades como a pecuária, a produção de carvão, o desmatamento e o cultivo de cana-de-açúcar, soja, algodão e outras lavouras. Confira o depoimento de um trabalhador escravizado.
Os extratos acima são do fascículo Trabalho escravo contemporâneo: + de vinte anos de combate (desde 1995)
Já no meio urbano, desde de 2010 têm crescido o número de trabalhadores escravizados em setores como a confecção têxtil, os quais são, em sua maioria, migrantes internacionais oriundos de países da América Latina, como Bolívia, Paraguai e Peru. Nesse período também foram registrados casos recorrentes na construção civil, com libertações de migrantes internos. O recente fluxo de haitianos e venezuelanos para o Brasil também já tem reverberado em libertações de trabalhadores desses países em território nacional. No geral, os migrantes saem de suas cidades e países atraídos por falsas promessas de trabalho, ou migram forçadamente por causa de sua precariedade socioeconômica.
Com o objetivo de erradicar o trabalho escravo, o Estado brasileiro tem historicamente centrado esforços na repressão ao crime, dedicando-se a medidas como a fiscalização de propriedades privadas e a punição administrativa e econômica daqueles que empregam trabalhadores sob essas condições.
Confira a animação Ciclo do Trabalho Escravo, da série #Enp Na Tela:
Ainda que essas ações sejam fundamentais para libertar os trabalhadores e sancionar os responsáveis, elas são insuficientes para erradicar a prática do trabalho escravo. A erradicação do trabalho escravo deve passar também pela criação de políticas públicas articuladas que contemplem a assistência à vítima e a prevenção ao problema, de forma que os trabalhadores possam se desvincular da situação de exploração à qual estão ou podem estar submetidos. Dentre as políticas de prevenção, estão as ações afirmativas no âmbito da Educação.
Com esse tipo de iniciativa, realizado por meio da construção de processos formativos, divulgação de informações e promoção de debates sobre trabalho escravo, as comunidades alcançadas se tornam preparadas para enfrentar o problema e denunciar práticas exploratórias.
Assim, o programa Escravo, nem pensar!, desde 2004, tem voltado as suas atividades para servidores públicos da Educação e da Assistência Social. O contato direto desses profissionais com as comunidades e a sua capilaridade no território amplia o alcance das ações e mobiliza atores sociais locais, os quais, juntos, são capazes de compor uma rede engajada de enfrentamento ao trabalho escravo.
Para saber mais sobre trabalho escravo contemporâneo leia o livro “Escravidão Contemporânea”, organizado pelo jornalista Leonardo Sakamoto.
Glossário de conceitos relacionados à temática do trabalho escravo*
Abono: adiantamento em dinheiro que o “gato” dá à família do trabalhador no momento em que ele é contratado.
Acero: limpeza ao longo do caminho da cerca na fazenda. Aliciar: seduzir, enganar,envolver.
Apanhar de pano: o mesmo que panada, ou seja, levar surra com o lado cego do facão.
Badequeiro: trabalhador que limpa as lâminas do trator em movimento, tirando barro, pedras ou galhos que ficam presos à grade.
Baladeira: rede de dormir.
Cantina: o mesmo que armazém, onde são vendidas as mercadorias da fazenda.
Cerqueiro: aquele que faz as cercas da fazenda.
Cega jumento: planta que solta um pelo que cega os roçadores, principalmente as crianças que, por serem mais baixas, são atingidas nos olhos.
Cuca: é o cozinheiro da fazenda. Vem da palavra “mestre-cuca”.
Diarista: trabalhador que ganha por dia de trabalho, independentemente da produção. Também não tem direitos garantidos.
Doutor da enxada: é como se chamam os peões que usam bem a enxada e rendem bastante no trabalho.
Fechar: matar alguém.
Gato: aquele que alicia a mão de obra para o trabalho nas fazendas. Também é conhecido como empreiteiro ou empeleiteiro.
Gambira: troca de um objeto por outro.
Motoqueiro: operador de motosserra.
Peão: trabalhador braçal.
Peão de trecho: trabalhador que não consegue sair da escravidão. Está sempre de trecho em trecho, mudando de uma fazenda pra outra. Também chamado de trecheiro.
Peonagem: outro nome para a nova escravidão no Brasil.
Salário cativo: quando o trabalhador paga pela sua comida.
Salário livre: a comida não é cobrada do trabalhador, mas seu salário é menor que o do cativo. Dessa maneira, a situação é a mesma: o trabalhador gasta mais do que o que ganha para poder comprar o que precisa na cantina.
Taca: surra violenta com chutes e pauladas.
*Baseado em pesquisa da coordenadora do grupo móvel de fiscalização, Marinalva Cardoso Dantas.
Fonte: Escravo, nem pensar!