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O sofrimento docente: entre a ausência de si e a ausência do outro | Caroline Fanizzi

Como pode o homem sentir-se a si mesmo quando o
mundo some?
Carlos Drummond de Andrade

Se só me faltassem os outros, vá; um homem
consola-se mais ou menos das pessoas que perde;
mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.
Machado de Assis

Valho-me de um diálogo imaginário entre Drummond e Machado de Assis para traçar algumas bordas – fugazes e provisórias – à temática que vem povoando as minhas reflexões e pesquisas nos últimos anos. Temática, essa, que, apesar de dizer de uma das mais universais experiências humanas, reveste-se de algumas camadas distintivas quando examinada na dimensão de um ofício singular. Ocupo-me aqui do sofrimento docente.

O sofrimento docente: entre a ausência de si e a ausência do outro | Caroline Fanizzi
Leia um trecho do livro aqui

Ora, mas por que me lançar ao exame de uma temática que parece ter se tornado evidente em nossa sociedade, uma temática cujas causas parecem ser explícitas e inquestionáveis? Os professores e professoras em nosso país devem diariamente fazer face a uma série de condições que deflagram uma profunda precarização de seu ofício: baixos salários, acúmulo de funções que implicam em um excesso de trabalho, classes superlotadas, recursos insuficientes nas escolas, violência, indisciplina discente, desvalorização por parte dos governos, gestores escolares, famílias dos estudantes. Todos os dias, nos informa um veículo de comunicação, 112 professores da rede estadual de São Paulo são afastados por problemas de saúde mental; um total de 20.173 nos seis primeiros meses de 2023.

Ainda que esse conjunto de elementos listados pareça deixar explícitos os contornos do solo em que emergem os diversos fenômenos e experiências relacionadas ao sofrimento de um(a) professor(a), busco com o livro acrescentar algumas camadas e nuances às discussões sobre o sofrimento docente. A evidência silencia, a evidência conforma. A evidência torna inquestionável. É, então, para esse ponto, tornado inquestionável, que convido vocês, caras leitoras, caros leitores, a olhar. Não é esse olhar, contudo, aquele que sai apressado em busca de confirmações colocadas sob a luz da evidência – aquelas que diariamente aparecem cifradas nos discursos sócio-midiáticos e pouco fazem avançar as reflexões. Confirmações essas que, também, dizem muito pouco sobre os sujeitos. Convido a uma forma de olhar que dispõe de tempo, de pausa; um olhar que busca encontrar vestígios de sujeitos naquilo que foi silenciado, apagado, ocultado. Naquilo que foi deixado às sombras da evidência.

Para além da precariedade material – explícita e evidente – que acomete um grande número de professoras e professores em seu ofício, proponho haver em nossa sociedade uma segunda forma de precariedade que, a despeito dos seus contornos aparentemente mais fugazes, recobre o ser e o fazer docentes de forma bastante premente e importante: a precariedade simbólica do ofício docente. Os(as) professores(as) ocupam hoje um lugar precário no tecido simbólico de nossa sociedade; um não-lugar, um lugar ameaçado pela ninguém-dade. Essa forma de precariedade se dá a ver nos recorrentes episódios que deflagram uma profunda desvalorização, deslegitimação e desautorização dos atos e palavras docentes. É, essa, como desenvolvo no livro, uma condição tecida por uma série de mecanismos e discursos que veiculam representações, expectativas e pressupostos acerca da figura docente.

Observamos, com frequência, o professor ser colocado como alguém que oferece risco e perigo, alguém cujas intenções são aquelas de doutrinar, manipular, corromper. Alguém que deve, por pressuposto, ser colocado sob o crivo de juízes que se lançam reiteradamente a julgar a retidão, a adequação ou como preferirem chamar, da sua atuação em seu ofício. É uma figura que parece estar, por princípio, desinvestida de credibilidade, de confiança. Essa pressuposta desconfiança recai igualmente sobre o que seria a sua dita “competência técnica ou profissional” para exercer o seu ofício, sustentando o que poderíamos nomear como pressuposto da incompetência. A partir dele, o professor é com frequência tido como alguém cuja formação parece sempre inadequada e insuficiente para o exercício de sua função. Alguém que “não dá conta” da turma, da escola, do ofício, das demandas, dos tempos modernos. Estou certa de que essa lista de pressupostos que constituem a condição de precariedade simbólica do ofício docente poderia ainda se alongar indefinidamente se nos lançássemos à escuta de professores e professoras que cotidianamente a vivenciam.

Neste ponto, talvez já estejam se perguntando como o imaginado diálogo entre Drummond e Machado de Assis poderia lançar luz ao exame das questões que aqui nos ocupam. Inspirada pelos escritos de Paul Ricoeur, examino o aparecimento de um sujeito no mundo a partir de uma dupla-face. Não basta que nos atestemos como seres capazes de dizer, de agir, de narrar histórias sobre a nossas vidas e sobre o mundo. Em alguma medida, todas essas capacidades dependem, para o seu aparecimento no mundo, do reconhecimento do outro. Dependem de um outro que revista de sentido e significado uma ação, uma enunciação, uma narrativa. Ou ainda, nas palavras de Ricoeur, é necessário que àquilo que seria apenas uma condição pessoal seja atribuído um estatuto social. Como pode, então, o homem sentir-se a si mesmo quando o mundo some?

O professor, submetido a uma profunda condição de precariedade material e simbólica em seu ofício, tem afetadas as suas capacidades que essencialmente nos constituem como agentes humanos. Ele vê reduzida a potência de suas capacidades de dizer, de agir e de narrar; e essa redução está profundamente relacionada com o que faz sofrer um sujeito. Nas narrativas e depoimentos de professores(as) em sofrimento, nota-se que há algo do si que se perde ou é profundamente afetado: falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.

Ao trazer para a luz do debate a condição de precariedade simbólica que afeta o ofício docente e o modo como ela se relaciona com o sofrimento de professoras e professores, torna-se possível examinar esse fenômeno a partir de uma perspectiva distinta das que hoje se fazem hegemônicas em nossa sociedade. Em lugar de individualizar e reduzir o sofrimento docente ao corpo orgânico daquele que sofre, busco lançar luz à sua dimensão política e social. Olho para o sofrimento não como um fenômeno que diz de corpos adoecidos, mas que diz de todo um sistema, de um arranjo do tecido social que precisa ser repensado e examinado com bastante atenção e cuidado. Olho para o sofrimento como indicativo de potência e não de doença ou renúncia ao ofício docente. Potência de alguém que resiste a se conformar a um mecanismo que descarta os sujeitos e a sua singularidade, que resiste a uma forma de vida ameaçada pelo ninguém. Potência de alguém que resiste a se adaptar à vida em um mundo que vai se tornando desértico em razão do esvaziamento do espaço público, das relações humanas e do debate. Precisamente porque sofremos nas condições de vida do deserto, propõe Hannah Arendt, “é que ainda somos humanos e ainda estamos intactos; o perigo está em nos tornarmos verdadeiros habitantes do deserto e nele passarmos a nos sentir em casa”. Por fim, proponho que, a despeito daqueles que diante da precariedade nos exigem resiliência, nós, professores e professoras, não nos acostumemos à vida no deserto e jamais passemos a nele nos sentir em casa.


Caroline Fanizzi é doutora em Educação, na área de Filosofia, pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e doutora em Sciences de lÉducation pela Université Paris 8. Mestre em Educação, na área de Psicologia, pela Faculdade de Educação da USP e pedagoga pela mesma instituição. Atuou como professora na Universidade Federal de Santa Catarina e também na educação básica na cidade de São Paulo. É membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Educação e o Pensamento Contemporâneo (GEEPC-FEUSP).

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