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O que é Antropologia?

A Antropologia é frequentemente considerada uma coleção de fatos curiosos sobre a aparência peculiar de pessoas exóticas, que descrevem seus estranhos costumes e crenças. É vista como uma distração divertida, aparentemente sem qualquer relação com a conduta da vida de comunidades civilizadas.

Essa opinião é equivocada. Mais do que isso, espero demonstrar que uma compreensão clara dos princípios da Antropologia ilumina os processos sociais de nosso próprio tempo e pode nos mostrar, se estivermos dispostos a ouvir seus ensinamentos, o que fazer e o que evitar.

Para provar minha tese, devo explicar brevemente o que os antropólogos estão tentando fazer.

Pode parecer que o domínio da Antropologia, da “Ciência do Ser Humano”, está preocupado com toda uma gama de ciências. O antropólogo que estuda a forma corporal é confrontado pelo anatomista que passou séculos em pesquisas sobre a forma bruta e a estrutura minuciosa do corpo humano. O fisiologista e o psicólogo se dedicam, respectivamente, a indagações sobre o funcionamento do corpo e da mente. Existe, então, alguma justificativa para o antropólogo afirmar que ele pode aumentar o nosso acervo de conhecimentos?

Há uma diferença entre o trabalho do antropólogo e o do anatomista, o do fisiologista e o do psicólogo. Estes lidam principalmente com a forma e a função típicas do corpo humano e da mente. Pequenas diferenças, como as que aparecem em qualquer série de indivíduos, ou são desconsideradas ou consideradas como peculiaridades sem significado particular para o tipo, embora às vezes sugestivas de sua ascensão a partir de formas inferiores. O interesse se concentra sempre no indivíduo como um tipo e no significado de sua aparência e funções do ponto de vista morfológico, fisiológico ou psicológico.

O que é Antropologia?
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Para o antropólogo, pelo contrário, o indivíduo parece importante apenas como membro de um grupo racial ou social. A distribuição e a gama de diferenças entre indivíduos, e as características determinadas pelo grupo ao qual cada indivíduo pertence, são os fenômenos a serem pesquisados. A distribuição das características anatômicas, das funções fisiológicas e das reações mentais é o objeto dos estudos antropológicos.

Pode-se dizer que a Antropologia não é uma ciência única, pois o antropólogo pressupõe um conhecimento da Anatomia individual, da Fisiologia e da Psicologia, e aplica esse conhecimento a grupos. Cada uma dessas ciências pode ser e é estudada de um ponto de vista antropológico.

O grupo, não o indivíduo, é sempre a principal preocupação do antropólogo. Podemos investigar um grupo racial ou social em relação à distribuição do tamanho do corpo, medido pelo peso e a estatura. O indivíduo é importante apenas como membro do grupo, pois estamos interessados nos fatores que determinam a distribuição de formas ou de funções no grupo. O fisiologista pode estudar o efeito do exercício extenuante sobre a função do coração. O antropólogo aceita esses dados e investiga um grupo no qual as condições gerais de vida tornam o exercício extenuante. Ele está interessado em seus efeitos sobre a distribuição de forma, função e comportamento entre os indivíduos que compõem o grupo ou sobre o grupo como um todo.

O indivíduo se desenvolve e atua como membro de um grupo social ou racial. Sua forma corporal é determinada por sua ancestralidade e pelas condições sob as quais vive. As funções do corpo, embora controladas pela constituição corporal, dependem de condições externas. Se as pessoas vivem por escolha ou necessidade em uma dieta exclusivamente carnívora, suas funções corporais serão diferentes daquelas de outros grupos da mesma constituição que vivem em uma dieta puramente vegetal; ou, inversamente, diferentes grupos raciais que são nutridos da mesma maneira podem mostrar certo paralelismo no comportamento fisiológico.

Muitos exemplos podem ser dados mostrando que pessoas essencialmente com a mesma ascendência se comportam de maneira diferente em diferentes tipos de ambiente social. As reações mentais dos indígenas dos planaltos ocidentais, um povo de cultura simples, diferem das dos antigos mexicanos, um povo da mesma raça, mas de organização mais complexa. Os camponeses europeus diferem dos habitantes das grandes cidades; os descendentes de imigrantes nascidos nos Estados Unidos diferem de seus ancestrais europeus; o viking nórdico, do fazendeiro norueguês nos Estados do noroeste; o republicano romano, de seus descendentes degenerados do período imperial; o camponês russo, antes da atual Revolução, do mesmo camponês depois da Revolução.

Os fenômenos da Anatomia, da Fisiologia e da Psicologia são passíveis de tratamento individual, não antropológico, pois parece teoricamente possível isolar o indivíduo e formular os problemas da variação de forma e função de modo que o fator social ou racial seja aparentemente excluído. Isso é completamente impossível em todos os fenômenos basicamente sociais, como a vida econômica, a organização social de um grupo, as ideias religiosas e a arte.

O psicólogo pode tentar pesquisar os processos mentais da criação artística. Embora os processos possam ser fundamentalmente os mesmos em toda parte, o próprio ato de criação implica que não estamos lidando apenas com o artista como criador, mas também com sua reação à cultura em que vive e a reação de seus semelhantes à obra que criou.

O economista que tenta desvendar os processos econômicos deve operar com o grupo social, não com indivíduos. O mesmo pode ser dito do estudioso da organização social. É possível tratar a organização social de um ponto de vista puramente formal, para demonstrar, através de uma análise cuidadosa, os conceitos fundamentais que lhe são subjacentes. Para o antropólogo, esse é o ponto de partida para uma consideração dos efeitos dinâmicos de tal organização como manifestados na vida do indivíduo e do grupo.

O estudioso de Linguística pode pesquisar a “norma” de expressão linguística em um determinado momento e os processos mecânicos que dão origem a mudanças fonéticas; a atitude psicológica expressa na linguagem; e as condições que provocam mudanças de significado. O antropólogo está mais profundamente interessado no aspecto social do fenômeno linguístico, na linguagem como meio de comunicação e na inter-relação entre língua e cultura.

Em resumo, ao discutir as reações do indivíduo a seus semelhantes, somos obrigados a concentrar nossa atenção na sociedade em que ele vive. Não podemos tratar o indivíduo como uma unidade isolada. Ele deve ser estudado em seu ambiente social, e a questão é relevante se são possíveis generalizações pelas quais uma relação funcional entre dados sociais generalizados e a forma e expressão da vida individual pode ser descoberta; em outras palavras, se existem leis geralmente válidas que governam a vida da sociedade.

Uma pesquisa científica desse tipo se preocupa apenas com as inter-relações entre os fenômenos observados, da mesma forma que a Física e a Química se interessam pelas formas de equilíbrio e movimento da matéria, tal como elas aparecem aos nossos sentidos. A questão da utilidade dos conhecimentos adquiridos é totalmente irrelevante. O interesse dos físicos e químicos é centrado no desenvolvimento de uma compreensão completa das complexidades do mundo exterior. Uma descoberta só tem valor do ponto de vista do lançamento de uma nova luz sobre os problemas gerais dessas ciências. A aplicabilidade da experiência aos problemas técnicos não diz respeito ao físico. O que pode ser de maior valor em nossa vida prática não precisa ser de seu interesse, e o que não tem valor em nossas ocupações diárias pode ser de valor fundamental para ele. A única valorização das descobertas que pode ser admitida pela Ciência Pura é seu significado na solução de problemas gerais abstratos.

Embora esse ponto de vista da ciência pura seja aplicável também aos fenômenos sociais, é facilmente reconhecido que eles dizem respeito a nós mesmos muito mais imediatamente, pois quase todos os problemas antropológicos afetam nossa vida mais íntima.

O curso do desenvolvimento de um grupo de crianças depende de sua ascendência racial, da condição econômica de seus pais e de seu bem-estar geral. O conhecimento da interação desses fatores pode nos dar o poder de controlar o crescimento e assegurar as melhores condições de vida possíveis para o grupo. Todas as estatísticas vitais e sociais estão tão intimamente relacionadas às políticas a serem adotadas ou descartadas que não é muito fácil ver que o interesse em nossos problemas, quando considerados de um ponto de vista puramente científico, não está relacionado com os valores práticos que atribuímos aos resultados.

O objetivo do livro é discutir os problemas da vida moderna à luz dos resultados dos estudos antropológicos realizados de um ponto de vista puramente analítico.
Para isso, será necessário obter clareza em relação a dois conceitos fundamentais: raça e estabilidade da cultura. Isso será discutido em seus devidos lugares.


José Carlos Pereira é professor com pós-doutorado em Antropologia Social, doutorado em Sociologia, mestrado em Ciência da Religião, bacharelado em Teologia e licenciatura plena em Filosofia. É autor de mais de 90 livros, em diversas áreas, publicados no Brasil e no exterior, além de algumas traduções de Franz Boas, incluindo o livro Antropologia da Educação e Antropologia Cultural, publicado pela Editora Contexto. Faz parte do Núcleo de Estudos Religião e Sociedade, do Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC/SP.

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