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O primeiro texto a gente nunca esquece

O primeiro texto a gente nunca esquece | Rubens Marchioni

VOCÊ LEMBRA O dia, ou talvez o momento, em que decidiu que passaria a respirar e que transformaria isso numa prática habitual e diária? Não?! Estranho, não é mesmo? Afinal, isso equivale a dizer que você esqueceu nada menos que um evento vital de sua vida. Algo tão significativo que, sem ele, você não estaria aqui, participando dessa conversa.

Normal. Ninguém se lembra de um evento que aconteceu quando ainda habitávamos o ventre materno. Nem mesmo sei se as técnicas de regressão de idade conseguiriam a proeza de viajar com tamanha profundidade até tocar o fundo desse oceano, que é a nossa história inconsciente. Seria o caso de pedirmos a São Jung que, de onde estiver, nos ilumine com generosidade nessa empreitada? Sim, porque vamos precisar.

E quanto à decisão de escrever? Você se lembra do momento em que disse algo como “a partir de hoje vou escrever com frequência, essa vai ser a minha vida, o meu jeito de viver”? Se respondeu que não, fique tranquilo, você é uma pessoa normal. Antes de você, o escritor Ernest Hemingway foi alvo da mesma pergunta. Veja o que ele respondeu: “Não; sempre desejei ser escritor”.

Alguns profissionais da escrita descobrem a vocação no momento em que são desafiados a produzir um trabalho para fins escolares. Foi o que aconteceu comigo. Primeiro, veio aquele poema, escrito aos 11 anos, por iniciativa própria. Depois, aos 14, sou convidado a participar de um concurso sobre o Dia da Ave. Entro no jogo. Entro para ganhar. Levo palavras e ideias para o campo e ali se inicia uma partida que, para mim, seria vitoriosa: primeiro lugar. Então sou mordido pelo bichinho da escrita.

Depois vem a primeira experiência de escrever num jornal. Primeiro artigo, com status de primeira página. Nada mal para quem ostenta apenas 15 anos de idade e vive numa cidade um tanto resumida, em seus 12 mil habitantes e máquinas de datilografia como objetos do desejo, para quem planeja desempenhar uma tarefa como essas. Eu sonhava com uma Lexikon 80, da Olivetti. Sonhava.

Outros, existem, que se iniciam graças à experiência de escrever relatórios. Foi assim com Graciliano Ramos. Seus textos, produzidos com estilo diferente e original, logo conquistam a atenção da mídia e se transformam em livros.

Trabalhos escolares, repartição pública e empresa, quantos mais espaços existem que servem como pretextos para a redação de relatórios, essa experiência fantástica de narração, um ótimo começo para a produção de romances?

Mas nem tudo é trabalho escolar, relatório ou coisa parecida. Um conto pode dar o start para a criação de um romance. Foi o que aconteceu com a escritora, crítica literária e ativista política americana Mary Therese McCarthy. Ela lembra que o primeiro capítulo do seu livro A Charmed Life, por exemplo, foi escrito como um conto.

Já Aldous Huxley, por exemplo, recomenda outro caminho. Ele sugere o uso do jornalismo como o início da carreira literária. Propõe que se escreva sobre tudo e sobre todos, para ampliar a técnica. Segundo Huxley, o jornalismo diversificado cumpre muito bem a tarefa de desenvolver nossas faculdades, ensinar-nos a dominar rapidamente nosso material e fazer com que encaremos bem as coisas. Afinal, precisamos transformá-las em palavras para o consumo do leitor. Nesse sentido, é como se fôssemos chefes de cozinha, de frente para uma bancada repleta de ingredientes, matéria-prima que, uma vez manipulada, deve agradar aos olhos e ao paladar, levando o consumidor a repetir o prato e pagar o valor escrito no cardápio.

Hemingway sempre desejou ser escritor. Quanto à Françoise Sagan, ela começa a escrever Bom-jour Tristesse livremente. A jovem quer escrever e dispõe de algum tempo livre para isso. Não acredita que pode romper a barreira estabelecida de que, sendo mulher, e ainda tão jovem, produzirá algo com valor literário. Naquele momento, ela simplesmente não pensa em “literatura”. Está ocupada consigo mesma. Interessa saber se teria a força de vontade necessária para a nova missão. Para não perder o pique, Sagan não pensa muito. Não analisa muito. Somente escreve e escreve. Usa de tal forma os recursos disponíveis que desmonta preconceitos aparentemente petrificados. Mais do que fazer literatura, Sagan trabalha com a finalidade de chegar bem mais longe e destruir os limites impostos pela sua época.

Tal como Huxley, posso afirmar que escrever “Não é penoso, embora constitua trabalho árduo. Escrever é uma ocupação bastante absorvente e, não raro, exaustiva. Mas sempre me considerei muito feliz por poder ganhar a vida entregando-me a algo que me agrada fazer. Pouquíssimas pessoas podem fazê-lo”. Portanto, fica o convite para começar.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]

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