Ser agricultor em regiões que hoje formam estados nacionais como Líbano ou Israel era muito diferente do que trabalhar a terra no antigo Egito, ou na região mesopotâmica hoje correspondente ao Iraque. A situação geográfica e o clima mais previsível da Palestina permitia o trabalho solitário de famílias camponesas, enquanto que o Nilo, de um lado e o Tigre e o Eufrates de outro tinham um regime de cheias e vazantes que obrigavam o agricultor a trabalhar coletivamente na construção de diques e canais para domar a natureza pródiga, mas agressiva. A construção de impérios na Mesopotâmia e no Egito tem, pois, muito (mas não só) a ver com as condições geográficas encontradas pelos seus habitantes. Não é uma determinação (mesmo porque não há como a Geografia determinar a História), mas um condicionamento. Nem todas as civilizações ao longo de grandes rios tiveram as características imperiais de Egito e Babilônia, mas esse tipo de organização política ocorreu em vários outros lugares como China e Índia, por exemplo. Mas não ocorreu em várias outras regiões onde também tínhamos (e temos) grandes rios e atividade agrícola (Amazonas, Mississipi, por exemplo, ou mesmo os rios europeus…).
Historiadores consequentes continuam dizendo que o ser humano atua em condições históricas concretas. Por mais que uma garota entre no curso de História por admirar, invejar e querer se tornar uma princesa medieval, isto nunca vai acontecer, mesmo por que a Idade Média ficou (felizmente) na poeira da História. Acabou. Ela tem um ideal anacrônico, viável apenas no mundo da fantasia, da mesma forma que o garotão, praticante de joguinhos eletrônicos, nunca vai poder se tornar um cavaleiro medieval. Anacronismo é isso.
Contudo, o anacronismo pode se manifestar de muitas outras maneiras. Um exemplo? Qualquer política preconceituosa com relação às mulheres. Não se trata de discutir questões morais, ou recorrer a textos bíblicos. Historicamente não faz sentido. Vejamos: o patriarca, o homem chefe de família era aquele que, entre outras funções, distribuía o serviço, as funções, os papeis de cada um da família. Era aquele que queria muitos filhos para que houvesse muitos braços (diziam que braços são dois e boca uma só). Era aquele que estabelecia regimes de trabalho, horário de dormir e de acordar, de comer e de rezar.
O processo de urbanização e a consequente criação de outras funções sociais de trabalho fez com que filhos e filhas ganhassem mais autonomia. Ao sair para o trabalho, eles não mais ficavam sob a tutela direta do patriarca. Ao ter seus horários definidos pelo patrão (ou patroa) a garota escapava do poder direto do patriarca. Ao perceber que na cidade uma criança precisava ser vestida, transportada, alimentada, medicada, educada e que isso custava muito caro, as mulheres passaram a tomar providências anticoncepcionais. Núcleos familiares com poucos, ou nenhum filho substituíram as grandes famílias e o poder esvaziado do patriarca já não tinha mais sobre quem se exercer, salvo como resquício simbólico de um tempo passado. As cidades tendem a matar o patriarcado.
Contudo, e bons autores tratam disso, o universo de valores muda mais lentamente do que o mundo da economia ou da política. Sem saber (ou até sabendo) que suas ideias são jurássicas muitos homens ainda querem ter sobre seus familiares uma ascendência que os tempos não justificam mais. E não apenas sobre as mulheres de sua família, mas sobre todas as mulheres. Homens que se sentem (ou se dizem) melhores do que elas dirigindo um carro ou uma empresa, um hospital ou um departamento universitário. Homens que ainda olham as mulheres com falsa condescendência, apoiados por instituições que reforçam o arcaísmo da discriminação, como a maioria das religiões mundiais (no catolicismo, em que as mulheres são apenas colaboradoras, não tendo direito a estabelecer vínculo direto entre a divindade e o fiel; entre os muçulmanos que “protegem” a mulher proibindo que sequer mostre seu rosto em público; entre os judeus ortodoxos que não permitem sequer que ela tome a iniciativa do divórcio quando a relação não caminha bem).
Cabe aos homens prestar mais atenção em suas atitudes individuais e sociais, ao preconceito cotidiano, às piadinhas de mau gosto, a atitudes que parecem, mas não são de companheiros com direitos iguais. Que tal compartilhar responsabilidades e não apenas “ajudar”? Afinal, alimentação da família, limpeza da casa, criação dos filhos, é responsabilidade do casal, ou não? E oportunidades profissionais, um direito dos dois, não é?
A era do patriarcalismo já era.
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.