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O direito de dispor de si | Jaime Pinsky

Durante um bom tempo ensinava-se que antes de os seres humanos tornarem-se agricultores e sedentários eles não passavam de nômadas famintos e infelizes caminhando incessantemente em busca de comida. Hoje há uma importante corrente de estudiosos que afirma o contrário. Que os homens e mulheres que viviam de caça e coleta tinham grande domínio do seu espaço, distinguiam perfeitamente o que servia e o que não servia para a alimentação, locomoviam-se sabendo quais vegetais e quais animais encontrariam pela frente, tinham uma alimentação balanceada, por força da variedade de comida ingerida, caçavam e coletavam durante poucas horas por dia, apenas o suficiente para se alimentar e ao grupo e eram felizes. Ao se fixarem em um local, tornando-se agricultores, mudavam para pior, pois viravam servos dos cereais, das vacas e das estações do ano e trabalhavam todos os dias de sol a sol, além de comer apenas o que plantavam, empobrecendo sua dieta. Tinham família grande (pois afinal, cada filho tinha dois braços e apenas uma boca), tornavam-se medrosos (“podem atacar minhas terras”), autoritários e egoístas ao desenvolver o sentimento de propriedade, e não conseguiam ser felizes.  

Em vários lugares, como nas civilizações ao longo dos rios (Egito, Mesopotâmia, China, Índia), tornou-se necessário estabelecer governos centrais para viabilizar obras destinadas ao ao aproveitamento adequado da água. Estamos falando de canais, represas e sistemas de irrigação que acabaram transformando camponeses de proprietários de terra em funcionários  do governo, de homens livres em verdadeiros servos. A organização pública, que deveria existir para apoiar os camponeses, vai se tornando a dona, a patroa, a que manda e os agricultores  deixam de ser livres para se tornarem, na prática, instrumentos a serviço do estado todo poderoso.

Até então as tribos tinham suas divindades, modestas, pois seu suposto alcance era limitado, circunscritos ao espaço de moradia, trabalho e atuação de determinado grupo. Não por acaso o próprio Jeová aparece, inicialmente, como deus dos exércitos.  Depois, começa a ser visto como o Deus dos hebreus. Só mais tarde, particularmente após o apóstolo Paulo, é que ideias de profetas hebreus, adaptadas por Jesus, e bastante alteradas por seguidores perspicazes, vão ser apresentadas como a única possibilidade da verdade divina.

Durante boa parte da Idade Média, particularmente na Europa Ocidental, o papel da Igreja não se resumia a dar assistência e orientação espiritual às pessoas. Ela amplia sua atuação no universo material, como possuidora de muitas propriedades e riquezas. Também desenvolve uma verdadeira ditadura no campo espiritual, pois estabelece quais práticas rituais podem garantir ao fiel o reino dos céus. E, não satisfeita, a Igreja se permite definir, pontificar e cobrar de todos (e as penas para os “pecadores” eram severas), sobre o certo e o errado, o justo e o injusto, o decente e o indecente.

A Revolução Francesa tornou-se um marco da separação entre Estado e Igreja, ou mais precisamente, entre o poder político e o espiritual. Quase todas as democracias ocidentais estabeleceram uma saudável separação entre a estrutura político-jurídica, representada pelo Estado e as necessidades espirituais, representadas pela religião (se e quando o cidadão tiver uma).  Cabe ao Estado apenas garantir o direito da prática religiosa, livre de imposições, por parte de seus cidadãos, em condições de igualdade;  não cabe ao Estado se meter nessa esfera. Por outro lado, cabe às religiões, todas elas, não se meter em assuntos do Estado. São pressupostos básicos de um estado democrático.

O direito de dispor de si | Jaime  Pinsky

Acontece que os Estados não são tão democráticos assim. Os políticos se acham capazes e no direito de determinar o que uma mulher deve fazer com o seu corpo. (Uma amiga diz que ela sim teria condição de indicar o que a maioria dos políticos deveria fazer com o corpo deles, mas meu artigo não vai enveredar por esse caminho). Muita gente não se conforma com mulheres livres e prefere determinar se elas devem ou não usar véus para não mostrar seus cabelos pecaminosos, túnicas escuras, para não revelar o corpo (mais pecaminoso ainda). Embora não chegando a esses extremos, não se pode negar que há religiões que ainda mantêm as mulheres em um segundo plano.  Admito, esta é uma questão interna de cada religião, já que as pessoas são livres para seguir ou não seguir qualquer uma delas, pelo menos no Brasil. Mas o que uma religião não pode é tentar interferir em questões relativas à saúde pública. Isto não é aceitável em nenhum Estado moderno, particularmente em se tratando de Estado declaradamente laico, como o nosso. Cada mulher é dona do seu corpo e não cabe a políticos, acreditando que assim podem ganhar votos, impedi-las de, finalmente, tomar posse do que é propriedade delas.


Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.

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