Durante um bom tempo ensinava-se que antes de os seres humanos tornarem-se agricultores e sedentários eles não passavam de nômadas famintos e infelizes caminhando incessantemente em busca de comida. Hoje há uma importante corrente de estudiosos que afirma o contrário. Que os homens e mulheres que viviam de caça e coleta tinham grande domínio do seu espaço, distinguiam perfeitamente o que servia e o que não servia para a alimentação, locomoviam-se sabendo quais vegetais e quais animais encontrariam pela frente, tinham uma alimentação balanceada, por força da variedade de comida ingerida, caçavam e coletavam durante poucas horas por dia, apenas o suficiente para se alimentar e ao grupo e eram felizes. Ao se fixarem em um local, tornando-se agricultores, mudavam para pior, pois viravam servos dos cereais, das vacas e das estações do ano e trabalhavam todos os dias de sol a sol, além de comer apenas o que plantavam, empobrecendo sua dieta. Tinham família grande (pois afinal, cada filho tinha dois braços e apenas uma boca), tornavam-se medrosos (“podem atacar minhas terras”), autoritários e egoístas ao desenvolver o sentimento de propriedade, e não conseguiam ser felizes.
Em vários lugares, como nas civilizações ao longo dos rios (Egito, Mesopotâmia, China, Índia), tornou-se necessário estabelecer governos centrais para viabilizar obras destinadas ao ao aproveitamento adequado da água. Estamos falando de canais, represas e sistemas de irrigação que acabaram transformando camponeses de proprietários de terra em funcionários do governo, de homens livres em verdadeiros servos. A organização pública, que deveria existir para apoiar os camponeses, vai se tornando a dona, a patroa, a que manda e os agricultores deixam de ser livres para se tornarem, na prática, instrumentos a serviço do estado todo poderoso.
Até então as tribos tinham suas divindades, modestas, pois seu suposto alcance era limitado, circunscritos ao espaço de moradia, trabalho e atuação de determinado grupo. Não por acaso o próprio Jeová aparece, inicialmente, como deus dos exércitos. Depois, começa a ser visto como o Deus dos hebreus. Só mais tarde, particularmente após o apóstolo Paulo, é que ideias de profetas hebreus, adaptadas por Jesus, e bastante alteradas por seguidores perspicazes, vão ser apresentadas como a única possibilidade da verdade divina.
Durante boa parte da Idade Média, particularmente na Europa Ocidental, o papel da Igreja não se resumia a dar assistência e orientação espiritual às pessoas. Ela amplia sua atuação no universo material, como possuidora de muitas propriedades e riquezas. Também desenvolve uma verdadeira ditadura no campo espiritual, pois estabelece quais práticas rituais podem garantir ao fiel o reino dos céus. E, não satisfeita, a Igreja se permite definir, pontificar e cobrar de todos (e as penas para os “pecadores” eram severas), sobre o certo e o errado, o justo e o injusto, o decente e o indecente.
A Revolução Francesa tornou-se um marco da separação entre Estado e Igreja, ou mais precisamente, entre o poder político e o espiritual. Quase todas as democracias ocidentais estabeleceram uma saudável separação entre a estrutura político-jurídica, representada pelo Estado e as necessidades espirituais, representadas pela religião (se e quando o cidadão tiver uma). Cabe ao Estado apenas garantir o direito da prática religiosa, livre de imposições, por parte de seus cidadãos, em condições de igualdade; não cabe ao Estado se meter nessa esfera. Por outro lado, cabe às religiões, todas elas, não se meter em assuntos do Estado. São pressupostos básicos de um estado democrático.
Acontece que os Estados não são tão democráticos assim. Os políticos se acham capazes e no direito de determinar o que uma mulher deve fazer com o seu corpo. (Uma amiga diz que ela sim teria condição de indicar o que a maioria dos políticos deveria fazer com o corpo deles, mas meu artigo não vai enveredar por esse caminho). Muita gente não se conforma com mulheres livres e prefere determinar se elas devem ou não usar véus para não mostrar seus cabelos pecaminosos, túnicas escuras, para não revelar o corpo (mais pecaminoso ainda). Embora não chegando a esses extremos, não se pode negar que há religiões que ainda mantêm as mulheres em um segundo plano. Admito, esta é uma questão interna de cada religião, já que as pessoas são livres para seguir ou não seguir qualquer uma delas, pelo menos no Brasil. Mas o que uma religião não pode é tentar interferir em questões relativas à saúde pública. Isto não é aceitável em nenhum Estado moderno, particularmente em se tratando de Estado declaradamente laico, como o nosso. Cada mulher é dona do seu corpo e não cabe a políticos, acreditando que assim podem ganhar votos, impedi-las de, finalmente, tomar posse do que é propriedade delas.
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.