Olhar para trás é humano. Com a laicização do mundo ocidental e o fim das certezas reveladas, antes garantidas pelas religiões, fomos ficando cada vez mais inquietos sobre o sentido de nossas vidas neste planeta. Com relação ao futuro, restou apenas o medo, no máximo uma esperança difusa. Restava fuçar nossas origens: levantamos histórias de aldeias perdidas nos Apeninos ou nas alagadas planícies da Europa Oriental e alimentamos a esperança de que memórias da família ou apenas recordações esparsas que coletamos com o auxílio dos mais velhos seriam capazes de nos tranquilizar em relação às nossas raízes. Líamos, estudávamos. Queríamos confirmar que éramos alguém.
Raízes sonhadas, raízes temidas. Poucos temos o despojamento de um famoso historiador brasileiro, oriundo de família supostamente aristocrática, que, perguntado sobre como seus ancestrais haviam amealhado fortuna, revelou que, ao contrário dos mitos de origem em voga, tratava-se de ladrões de cavalos e muares na Feira de Sorocaba, ainda na primeira metade do século XIX. Isso nunca teria acontecido com os nossos, é claro. Nossos avós eram intelectuais que não conseguiram estudar por terem que trabalhar para sustentar os irmãos mais novos, ou nobres que, por motivos políticos abandonaram uma situação privilegiada na Europa para se transformarem em camponeses de café no Brasil. Na pior das hipóteses era gente comum, mas séria, trabalhadora, tipos agregadores, daí as famílias tão bem estruturadas…
Nas festas o pessoal se juntava para compartilhar o peru, ou o leitão, o arroz de forno com legumes e carne moída (que comida é esta, meu Deus, de onde veio?) ou a massa quase afogada em molho de tomate ralo. Em famílias oriundas do Vêneto costumava-se preparar uma polenta para guarnecer o ossobuco. Aos poucos, as mulheres foram cedendo aos homens o direito – e a obrigação – da comida nas comemorações e o churrasco substituiu quase tudo. A linguiça barata para “encher a pança” dos mais famintos, a costela pingando gordura, a asinha ressecada de frango e, para os pacientes, a picanha, essa glória dos churrasqueiros tupiniquins, assada lentamente, deixada para o final, para os entendidos. Sempre havia reclamações. A Michelle, que virou vegetariana, não se conformava em se alimentar apenas de saladas em datas especiais e lembrava saudosa da maionese da vó. O Marcos, primeiro da família a entrar na universidade – e logo em Medicina, um talento –, que pedia o retorno da família às origens italianas, afinal, um vinhozinho não faria mal a ninguém e era melhor do que a cervejinha “aguada”. E tinha também o tio Ricardo que, para não perder a fama de espírito de porco, reclamava de tudo e ainda levava de volta pra casa um fundinho de sorvete de creme barato que ele trazia em pote de dois litros. Mas, no geral, o ambiente era muito gostoso, família. Começava e acabava com abraços e beijos, reservados no começo, calorosos no final. Ninguém se importava com o cheiro de carne que perseguia os diferentes ramos familiares na volta para casa: ele só se fazia notar em um ou outro adolescente avesso ao banho, sporcaccione nato.
De pouco tempo pra cá as histórias de família não têm mais tido o mesmo sucesso. Não só a garotada dá um rosnado de insatisfação ao ter sua atenção chamada para ouvir o tio com suas velhas histórias “que não têm nada a ver”, mas mesmo a Cotinha, de solteirona cordata e generosa (ajudou a montar o enxoval de várias sobrinhas, e tudo com cretone de qualidade), transformou-se em uma militante do Facebook. A partir de suas próprias fontes de informação formula opiniões sobre tudo, de buracos da cidade (cavoucados durante a noite por inimigos do prefeito atual) à guerra civil na Síria (o Fuad da Kibelândia me disse que foi provocada por Trump junto com o primeiro-ministro de Israel), não esquecendo de problemas sociais (aborto é coisa do demo), esportivos (Brasil não ganha mais a Copa enquanto não acabarem com os terreiros de umbanda por aqui) e culturais (não é uma pouca vergonha uma mãe mandar a filha botar a mão em homem pelado, inda mais em público?).
Tia Cotinha lidera um grupo que rachou a família: ela se recusa a confraternizar com alguns “devassos” que, segundo ela, nem parecem ser da mesma família. Para não se encontrarem, uns e outros não vão mais aos churrascos. Mesmo porque, dizem, tem gente de lá que fez algumas escolhas esquisitas, do tipo viver com gente do mesmo sexo. E, pior que tudo, tiveram o descaramento de colocar fotos no Face.
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.