Quem pensava no futebol como um esporte puramente masculino ficou parado no tempo. Isso já foi verdade, como foi verdade o fato de ele começar, no Brasil, como um esporte de elite, virar uma atividade do povão, quando não de marginais e voltar a ganhar respeitabilidade, principalmente por conta do elevadíssimo padrão salarial praticado na elite do futebol mundial. Por outro lado, há países em que o futebol feminino se ombreia em importância ao masculino, quando não uma atividade prioritariamente das mulheres, como ocorre nos EUA.
Como em tudo, até na prática esportiva pode ser constatada uma historicidade. Verdades são diferentes em diferentes locais e épocas, por que não no futebol? Já estamos longe do tempo em que os craques se matavam em campo, mas eram impedidos de frequentar a parte social dos clubes. Mulheres até vibravam com dribles e gols dos grandes jogadores, mas não dançavam com eles. Agora os craques são atrações disputadas em atividades sociais e, não poucas vezes, estimulados pelo famoso jabaculê, que agora recebe nomes mais chiques como cachê social, por exemplo. Também acabou o tempo em que juízes, bandeirinhas, dirigentes, comentaristas ou repórteres eram apenas homens. Debates televisivos com mulheres são tão interessantes (ou aborrecidos, quando não enfocam nosso time do coração) do que com homens. Eles e elas se atropelam pela prioridade de apresentar seus argumentos, fazem ou não previsões sobre o resultado dos jogos, discutem táticas dos treinadores, falhas da arbitragem, talento ou “grossura” dos jogadores. Ficam em cabines desconfortáveis, lutam pela notícia, tentam com denodo o tão desejado furo de reportagem, entrevistam e questionam jogadores e técnicos após os confrontos. Igual aos profissionais homens. Com uma diferença importante: são assediadas e desrespeitadas na sua condição de mulher.
Alguém poderia dizer que homens também são agredidos quando cobrem jogos, principalmente quando identificados como torcedores de times adversários. Verdade, mas as mulheres são desrespeitadas na sua condição de mulheres e quem as ofende tenta se declarar superior a elas, apenas por serem…homens. Duas profissionais foram, recentemente, atacadas, ao vivo, por homens que tentaram beija-las. E isto é machismo da pior espécie. Inaceitável nos dias que correm.
Elas não querem que gostem de tudo que elas falam. Elas não pretendem ser donas da verdade. Elas só querem trabalhar em paz. Vamos lá gente, vamos deixa-las trabalhar?
O outro assunto do dia, que, no fundo é o mesmo (intolerância), trata de dois episódios ocorridos nesta semana que passou. De um lado, tiros atingiram ônibus da caravana do ex-presidente Lula. Parece que não tiveram a intenção de ferir ninguém, já que pegaram a distancia razoável das poltronas em que iam os viajantes. Parece que Lula não estava em nenhum dos ônibus atingidos. Não importa. O simples fato de chegarmos a esse ponto de agressividade e violência depõe contra nossas práticas democráticas, nosso senso de justiça, nossa decência. Não importa o que cada um pensa a respeito do ex-presidente, do seu partido, de seus seguidores. Não importa que Lula já tenha sido condenado em segunda instância. Não me consta que o energúmeno que atirou tivesse recebido da Justiça brasileira a tarefa de executar qualquer sentença a tiros, mesmo porque esse tipo de pena não é prevista em nosso Código Penal. Arrogar-se o direito de supostamente fazer justiça com as próprias mãos é intolerável, e nesse caso específico poderia ter repercussões impensáveis em um país onde uma simples faísca pode detonar os barris de pólvora da burrice e do extremismo irresponsável.
O mesmo vale para aqueles que, por interesse próprio, de sua agremiação, ou de grupos de corruptos lançou ameaças contra o ministro Edson Fachin e sua família. Mais uma vez: por mais que tenhamos o direito de não gostar de manifestações do Supremo Tribunal Federal ou de alguns de seus ministros, por mais que tenhamos o direito, como cidadãos, de questionar suas decisões (ou suas indecisões), não temos o direito de ameaçar a integridade física de nenhum juiz.
E mais uma vez penso como historiador: bem, ou mal, estamos em tempos de reformas, não de revolução.
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.