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Mudança sintática do português brasileiro: perspectiva gerativista | Vol. 6

Levando em consideração o breve panorama que será traçado na “Introdução”, pode-se dizer que este volume, o sexto da coleção História do Português Brasileiro, se integra aos esforços dos projetos que tratam da história do português brasileiro e representa um exemplo de consolidação da grande empreitada que foi o projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB), idealizado e coordenado por Ataliba de Castilho.

Os capítulos que o compõem dedicam-se a estudos de mudança sintática, dentro da perspectiva gerativa da Teoria dos Princípios e Parâmetros, proposta inicialmente em Chomsky (1981), e posteriormente repensada sob os refinamentos decorrentes da visão minimalista, veiculada no Programa Minimalista (cf. Chomsky, 1995, 2000, 2001). Nesse particular, o volume expressa igualmente a consolidação de um paradigma de pesquisa da Sintaxe Diacrônica, o qual teve a sua origem nos cursos de Pós-Graduação da Unicamp, na década de 1990, ministrados por Fernando Tarallo, Mary Kato e Ian Roberts (cf. Roberts e Kato, 1993).1

Vale ressaltar que, em alguns dos textos, encontramos o entendimento da variação e mudança sintática com base no diálogo entre a Teoria dos Princípios e Parâmetros e a Teoria da Variação e Mudança (cf. Weinreich, Labov e Herzog, 1968; Labov, 1972, 1994, 2001). Da mesma forma, pode-se constatar uma associação entre a teoria dos Princípios e Parâmetros e os pressupostos assumidos na perspectiva cartográfica, elaborada inicialmente por Rizzi (1997), e na teoria construtivista, desenvolvida em Marantz (1997, 2013). Tais diálogos contribuem para uma abordagem mais profunda dos fenômenos linguísticos abordados, não só em termos diacrônicos, como também em termos descritivos.

Destaque-se ainda o fato de que, embora os autores tratem os fenômenos linguísticos dentro de teorias formais, a própria natureza da investigação histórica supõe o mergulho no universo empírico dos corpora rigorosamente elaborados e organizados. Dentro do PHPB, a documentação histórica apresenta variedade de gêneros textuais e de representação geográfica e revela o manejo linguístico de falantes letrados que, de alguma forma, tiveram acesso aos usos cultos do português (cf. o texto de Galves no “Posfácio” deste volume). Dessa forma, os fenômenos linguísticos que identificam a gramática brasileira são buscados nas trilhas empíricas traçadas nos textos históricos, a partir do século XIX, pertencentes ao acervo documental construído pelos pesquisadores do PHPB.

Por fim, entendemos que o sexto volume se encontra em consonância com o entendimento do que seja uma obra de referência ou obra de consulta. Como sabemos, uma obra de referência retrata o momento histórico de uma ciência, tendo, portanto, importância fundamental no desenvolvimento científico. Com base nessa definição, temos uma obra de referência, uma vez que os capítulos que o compõem estão articulados na percepção de uma abordagem teórica compartilhada pelo conjunto de seus autores. Naturalmente, no percurso da consolidação, os autores chegaram a refinamentos em suas reflexões, graças à incorporação de novas hipóteses e propostas surgidas ao longo dos últimos anos. Não somente o quadro teórico apresenta essa atualização, como também a abordagem quantitativa, se comparada ao início do Projeto PHPB, com a incorporação de novos dados retirados de uma variedade maior de documentos.

Como afirma Charlotte Galves em seu posfácio, nosso trabalho tem essa qualidade de apontar os potenciais estudos sobre a história do português brasileiro e sobre as grandes questões acerca da variação e mudança que ainda intrigam os pesquisadores na busca de traçar um quadro mais completo e detalhado da mudança sintática ocorrida em nossa língua.

Vejamos a seguir uma apresentação sucinta de cada um dos oito capítulos que compõem este volume.

O capítulo inicial de autoria de Maria Eugênia Duarte apresenta uma discussão sobre o sujeito nulo no português brasileiro (PB), desde a formulação do Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN), passando por revisões recentes, que revelam uma evolução no tratamento das línguas em relação ao fenômeno e apontam para o comportamento do PB como língua de sujeito nulo “parcial”. O comportamento do PB é observado à luz das propriedades relacionadas ao PSN, relacionando as mudanças atestadas à mudança no núcleo Flexão. São reunidas evidências empíricas da mudança de língua [+sujeito nulo] para língua [-sujeito nulo], com base em análises diacrônicas e sincrônicas.

Como a autora enfatiza, a ocorrência de variação entre sujeitos referenciais nulos e expressos nos mesmos contextos estruturais revela que não há distribuição complementar e permite questionar o estatuto de língua de sujeito nulo parcial, tal como o PB tem sido apontado. Os resultados sugerem, antes, um estágio no processo de mudança em direção ao preenchimento dos sujeitos referenciais, que já superam amplamente os nulos. A análise do sujeito anafórico de terceira pessoa com base em parte da amostra PHPB, que constitui o elo do volume, se não nos revela um quadro próximo aos atestados para a língua oral (cartas de jornais constituem um gênero que tem pouco em comum com a fala), já indicam alguns importantes traços de uma gramática [-sujeito nulo], que exibe pronomes expressos em encaixadas retomando o sujeito da principal e, particularmente, não evita pronomes pessoais com o traço [-humano].

No capítulo seguinte, sobre construções possessivas e existenciais do PB, Juanito Ornelas de Avelar focaliza orações com os verbos ter, haver e estar. A análise se concentra, num primeiro momento, em propriedades das sentenças que servem à expressão de posse e existência no português brasileiro contemporâneo, dentro de uma perspectiva tanto descritiva quanto teórica, à luz de pressupostos minimalistas da Teoria de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1995).

Em adição ao panorama teórico-descritivo, o estudo se ocupa do mesmo conjunto de construções no eixo diacrônico, procurando responder em que medida os fatos atestados em estágios anteriores permitem explicar a emergência de inovações gramaticais, em especial no que diz respeito às orações existenciais. Além das orações possessivas e existenciais propriamente ditas, também são apresentadas as chamadas “expressões de tempo decorrido” de base possessivo-existencial.

Para o tratamento de propriedades do PB contemporâneo, o estudo de Avelar se vale tanto de dados obtidos por meio de introspecção gramatical, quanto por levantamento de padrões frásicos em amostras de fala e escrita, a serem explicitadas ao longo do texto. Para o PB oitocentista e novecentista, foram considerados anúncios e cartas de leitor em jornais dos séculos XIX e XX publicados em cinco estados – Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo – que compõem o corpus mínimo do PHPB.

O autor argumenta ainda que as construções existenciais com ter do PB são derivadas a partir da estrutura interna que subjaz às orações possessivas com o mesmo verbo. A diferença entre uma e outra reside na entrada ou não de um constituinte nominal na posição de sujeito, resultando na estrutura possessiva ou existencial, respectivamente. Na linha de outros trabalhos gerativistas sobre a relação entre verbos possessivos e copulares/estativos (em particular, Freeze, 1992), o capítulo também defende que o possessivo ter (e, consequentemente, sua versão existencial) é obtido, em termos derivacionais, pela combinação dos traços subjacentes ao verbo estar e à preposição com.

Para reforçar essa hipótese, são apresentadas algumas propriedades das orações possessivas e existenciais com a locução estar com no português brasileiro, que se diferenciam daquelas com ter em termos aspectuais: enquanto as orações com estar com apresentam um estado transitório ou recente, aquelas com ter tendem a ser interpretadas como uma situação mais permansiva ou imutável. No que diz respeito às expressões de tempo decorrido, são analisados casos com haver, ter e estar com, sendo mostrado que, enquanto as expressões com ter e estar com são de base oracional, aquelas com haver não apresentam mais esse estatuto, devendo ser tratadas como de natureza nominal.

A emergência de ter como o verbo existencial canônico do português brasileiro é associada a mudanças relacionadas ao Parâmetro do Sujeito Nulo que tiveram lugar nessa variedade do português (cf. capítulo “O sujeito nulo no português brasileiro”). Quanto às orações possessivas, em particular, é mostrado que as propriedades dessas estruturas não se alteraram do século XIX ao século XXI, apesar de terem sido detectadas, na amostra novecentista, orações construídas com ordens de constituintes bem pouco usuais no PB contemporâneo. Entre as expressões de tempo decorrido levantadas nas amostras, não foram registrados casos com ter ou estar com, o que sugere tratar-se de inovações recentes do PB.

No capítulo “A sintaxe dos pronomes pessoais clíticos na história do português brasileiro”, Marco Antonio Martins analisa a sintaxe dos pronomes pessoais clíticos, em diferentes ambientes verbais, envolvendo tanto as formas finitas simples quanto os grupos constituídos de auxiliar/modal/aspectual e verbo principal, na escrita brasileira culta que circulou em jornais em diferentes estados, nos séculos XIX e XX, a partir de uma amostra extraída do corpus do PHPB. A hipótese central do trabalho é a de que o complexo quadro que envolve a sintaxe dos pronomes pessoais clíticos na escrita brasileira, sobretudo no século XIX, é o reflexo de diferentes padrões gerados por distintas gramáticas do português – do português clássico (PC), do português europeu (PE) e do PB. Mudanças paramétricas no componente sintático e no componente morfológico que estão associadas às gramáticas do PE e do PB, a partir da gramática do PC, definem diferentes posições para os clíticos na estrutura da sentença e para a sua colocação em próclise ou em ênclise em relação ao seu hospedeiro.

No desenvolvimento de seu texto, Martins desenha um breve panorama dos estudos sobre a sintaxe dos pronomes pessoais clíticos no quadro da teoria gerativa, incluindo os padrões de colocação dos clíticos na escrita brasileira. O autor apresenta uma análise estatística dos (complexos) padrões empíricos de posição e de colocação dos clíticos, em diferentes ambientes sintáticos, na diacronia da escrita culta brasileira a partir de dados do projeto PHPB. Sua análise envolve uma interpretação diacrônico-formal desses padrões estatísticos para comprovar a hipótese de trabalho.

Os resultados estatísticos encontrados no corpus analisado permitem ao autor afirmar que, na escrita brasileira culta, manifestam-se diferentes padrões que envolvem a posição e a colocação dos pronomes clíticos. Esses padrões são agrupados pelo autor em três grandes conjuntos: (1) sentenças com interpolação do marcador de negação “não” e de outros elementos em sentenças-matriz, sem atrator, e sentenças com subida de clíticos e próclise ao verbo finito, igualmente em ambientes sem atratores, em grupos verbais (exceto em construções com auxiliar passivo); (2) sentenças com ênclise em contextos neutros ([XP])[XP]V, mais recorrentes em textos da segunda metade do século XIX, com um aumento progressivo da próclise nos textos a partir desse período; e (3) sentenças com próclise ao verbo em primeira posição absoluta em orações afirmativas, e ao verbo do qual o clítico depende sintática e semanticamente em sentenças com dois ou mais verbos formadores de predicados complexos.

Martins se vale da proposta formal de Galves, Torres Morais e Ribeiro (2005) para defender que esses padrões empíricos podem estar associados a estruturas geradas por distintas gramáticas do português: às gramáticas do PC e do PE, em que os clíticos são afixados à categoria funcional Flexão e estão sujeitos à restrição da colocação não inicial – que se aplicaria em diferentes domínios nessas gramáticas (padrões descritos em (1) e (2) anteriores); e à gramática do PB, em que os clíticos são afixados à categoria lexical verbal e não estão sujeitos à restrição não inicial (padrões em (3)). Desse modo, o autor conclui que os diferentes padrões empíricos na escrita brasileira dos séculos XIX e XX instanciam propriedades da gramática inovadora do PB e de outras gramáticas que os falantes cultos recuperam.

No capítulo “O objeto nulo”, Sonia Cyrino desenvolve uma análise diacrônico-formal de construções que apresentam o objeto nulo no PB. Primeiramente, a autora apresenta um breve panorama dos estudos sobre o objeto nulo dentro do quadro da gramática gerativa. O tópico de estudo surgiu devido à discussão sobre o Parâmetro do Sujeito Nulo (cf. capítulo “O sujeito nulo no português brasileiro”). A observação de que algumas línguas permitem que o complemento do verbo também seja fonologicamente nulo colocou naturalmente a questão: haveria um Parâmetro do Objeto Nulo? A resposta parece ser negativa, tendo em vista a diversidade de fenômenos que são todos rotulados como “objeto nulo”.

A partir dessa constatação, Cyrino apresenta um relato dos estudos sobre as construções de objeto nulo no PB, para mostrar suas peculiaridades. Essas construções têm certas propriedades: (i) o antecedente do objeto nulo é [-animado] e pode ocorrer em uma segunda (ou outra) oração coordenada; (ii) o antecedente é um nominal [±específico] e permite leituras estrita e imprecisa. Além dessas características, outra importante propriedade do objeto nulo do PB é o fato de que é necessário um paralelismo estrutural entre ele e seu antecedente, uma propriedade também atribuída ao fenômeno de elipse de sintagma verbal (elipse de VP).

A autora apresenta ainda um panorama sobre a mudança nas ocorrências do objeto nulo, conforme investigações conduzidas dentro do Projeto PHPB. Propriedades como a ausência de animacidade e as possibilidades de especificidade do antecedente foram confirmadas diacronicamente nesses estudos. Finalmente, a autora apresenta uma análise formal sobre as construções analisadas e mostra que os dados diacrônicos também confirmam o requisito de paralelismo de estruturas observado nas ocorrências sincrônicas do objeto nulo.

Dentro de um enfoque teórico formal, Cyrino tem sustentado a proposta de que o objeto nulo no PB é resultado de elipse de um DP reconstruído em FL (cf. Fiengo e May 1994), a partir de um DP antecedente em uma posição paralela. Segundo a autora, a vantagem da análise do objeto nulo como elipse de DP sobre as outras análises é que, além de explicar as leituras imprecisas, ela também pode explicar igualmente as restrições de animacidade. Para tanto, são necessárias algumas condições: a) aceitarmos que, no PB, o verbo permanece em uma categoria funcional baixa; b) reconhecermos os requisitos de paralelismo exigidos em elipse; c) assumirmos diferentes posições para diferentes papéis temáticos.

Enfim, através do estudo diacrônico, Cyrino afirma que é possível explicar por que o PB é a única língua românica que apresenta o objeto nulo com propriedades bastante particulares. A autora conclui que a mudança sintática que a língua sofreu inclui o aumento da elipse proposicional (que poderia ser substituída por um clítico neutro/invariável o) e a extensão da possibilidade de elipse para os sintagmas nominais cujos antecedentes têm traços semelhantes, ou seja, àqueles que possuem o traço [-animado], fazendo surgir o objeto nulo.

O capítulo intitulado “O objeto indireto: argumentos aplicados e preposicionados” retoma e refina estudos anteriores, nos quais Maria A. Torres Morais e Rosane de Andrade Berlinck apresentam uma análise diacrônica da expressão do objeto indireto (OI), nas variedades cultas do PB, tal como se manifesta nos corpora do PHPB. O quadro teórico assumido engloba os pressupostos da Teoria dos Princípios e Parâmetros, na vertente minimalista (cf. Chomsky, 1995, 2000, 2001, 2004, 2005), e da Teoria Sociolinguística da Variação e Mudança (cf. Weinreich, Labov e Herzog, 1968; Labov, 1972, 1994, 2001). O quadro teórico que sustenta a análise tem ainda como ponto central a teoria dos núcleos aplicativos como introdutores de argumento, dentro de uma perspectiva construtivista da estrutura de argumentos do predicado (cf. Marantz, 1997, 2013; Pylkkänen, 2002; Cuervo, 2003, 2010).

As autoras assumem duas hipóteses: (i) objetos indiretos no PE e na fase histórica do PB são expressos morfologicamente pelo Caso dativo; (ii) a perda do Caso dativo no PB leva a mudanças no sistema dos pronomes pessoais e no sistema de preposições. Os resultados empíricos obtidos fornecem um panorama de variação e mudança que se enquadra em dois fenômenos correlacionados. O primeiro é o decréscimo no uso da preposição a, como marcadora de Caso dativo, a qual é substituída pelas preposições transitivas para/de. O segundo refere-se ao uso na 3a pessoa dos pronomes clíticos dativos, lhe/lhes. Os resultados empíricos revelam que, na história do PB, ocorre um decréscimo no emprego desses clíticos, sendo os mesmos substituídos por outras estratégias de pronominalização, entre elas, a dos pronomes oblíquos ele/eles/ela/elas introduzidos por a/para.

O panorama descritivo do OI no português culto/padrão, na sua expressão nominal e pronominal, com enfoque nos pronomes clíticos lhe/lhes, no uso de 3a pessoa, realiza-se dentro dos contextos verbais semanticamente classificados como verbos dinâmicos de transferência/movimento e verbos de criação. Aos resultados quantitativos obtidos nos corpora históricos dos séculos XVIII e XIX são adicionados novos dados coletados em cartas pessoais escritas no século XX, em diferentes estados brasileiros, a saber, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Santa Catarina. Todo esse material compõe o acervo documental do Projeto PHPB.

Tais resultados são interpretados pelas autoras como fundamentais por permitirem isolar os fatores linguísticos relevantes na determinação da variação e mudança. De fato, a formatação de uma nova gramática brasileira inclui reanálises na expressão gramatical do OI, pronominal e lexical. Contempla-se ainda uma discussão formal das estruturas ditransitivas nas suas duas modalidades: a dativa e a preposicionada, uma vez que ambas se diferenciam em aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos.

Por fim, as autoras apresentam um conjunto de sugestões para a abordagem de outros aspectos que estão ainda pouco trabalhados pelos linguistas. Entre eles, o da hipótese de que os fenômenos de variação e mudança podem ser mais bem entendidos quando se articula um diálogo conciliatório entre uma teoria formal e uma teoria da variação e mudança que busca traçar o percurso e implementação dos fatos de variação e mudança como proposto pela teoria sociolinguística laboviana.

A proposta do capítulo sobre a ordem do sujeito em orações declarativas de autoria de Rosane de Andrade Berlinck e Izete Lehmkuhl Coelho é resgatar os resultados, as conclusões e as discussões acerca da posição do DP sujeito no português escrito no Brasil durante os séculos XIX e XX, com o objetivo geral de traçar a história desses processos e oferecer respostas teóricas às seguintes questões: (i) quais as condições linguísticas que permitem a ordem VS ao longo dos séculos investigados?; (ii) VS é um padrão único ou é a manifestação de diferentes estruturas sintáticas?; (iii) há uma correlação direta entre estrutura sintática (SV/VS) e função discursiva?

Para alcançar esse objetivo geral, as autoras utilizam uma amostra de documentos (cartas de leitores, anúncios e cartas pessoais) dos séculos XIX e XX disponível nos corpora do PHPB, com o propósito de descrever (i) a variação da ordem do DP sujeito, ao longo da história do português escrito no Brasil, buscando observar quais são as condições linguísticas que permitem a ordem VS; (ii) as tendências majoritárias de uso da ordem VS(O), identificando a posição do verbo na construção; (iii) os padrões sintáticos que superficializam as ordens VS, [XP]VS e (XP)V[XP]S; e (iv) a correlação existente entre ordem VS e foco.

Os resultados deste estudo mostram que a sintaxe das construções VS na escrita brasileira do século XIX para o século XX mudou. No século XIX, VS manifesta resquício de padrões de inversão germânica [XP]VS e românica V[XP]S, especificamente com verbos transitivos e intransitivos. As mudanças estão atreladas à perda do movimento do verbo para uma posição na periferia de IP e à perda de inversão livre do DP sujeito.

O fato de serem construções quase residuais na escrita brasileira do século XIX indica o quanto a mudança que resultou nos padrões atuais de ordenação já estava avançada naquele momento, provavelmente refletindo usos bastante consolidados na fala. No século XX, a ordem VS em construções com verbos intransitivos ou transitivos não é mais uma opção disponível. VS é restrita a construções V[XP]S copular e inacusativa e (XP)VS inacusativa, nesse último caso, com uma tendência bastante acentuada de manifestar algum elemento locativo na posição pré-verbal e efeito de definitude sobre o DP pós-verbal, com possibilidade de receber interpretação de foco. Tudo leva a crer que a maior parte dos fatores que regiam a ordem VS no século XIX não continuam atuantes no século XX.

Sílvia Cavalcante, no capítulo “Revisitando as construções com se na história do português brasileiro”, aborda as construções com se, tradicionalmente analisadas como construções passivas sintéticas, com o intuito de demonstrar que tais construções não podem ser analisadas como instâncias de se-passivo. Para tanto, a autora utiliza como corpus textos de jornais brasileiros – anúncios, cartas de leitores e cartas de redatores – publicados entre os séculos XIX e XX no Brasil. Desse modo, a hipótese principal que norteia o trabalho está centrada em outras mudanças que ocorreram na diacronia do português (tanto europeu quanto brasileiro) e que fazem levantar a existência de uma mudança gramatical ocorrida a partir da virada do século XX, a qual afeta a posição do sujeito, mas não afeta as construções com se. Os objetivos do trabalho são: analisar as construções com se tradicionalmente analisadas como passivas sintéticas e observar o comportamento do argumento interno (expresso/não expresso, anteposto/posposto) e da concordância entre ele e o verbo, a fim de mostrar se essas construções são de fato passivas sintéticas na história do PB.

Após apresentar um breve panorama dos trabalhos realizados sobre as construções com se no PB e no PE, Cavalcante introduz o ponto de vista teórico baseando-se em pelo menos dois modelos teóricos: a Teoria de Regência e Ligação e o Programa Minimalista. A autora comprova empiricamente as suas hipóteses a partir de uma análise quantitativa de dados e apresenta uma interpretação desses padrões estatísticos. Foram analisados três aspectos sintáticos das construções com se: a posição do argumento interno em relação ao verbo (pré-verbal, pós-verbal e topicalizado); a concordância entre o argumento interno plural e o verbo; a forma do argumento interno.

Os padrões estatísticos encontrados no corpus analisado por Cavalcante permitem à autora afirmar que, na história do PB, não há mais construções com se-passivo, mas sim construções com se-genérico (que envolvem uma estrutura ativa e não passiva). Com relação à posição do argumento interno, Cavalcante mostra que sua posição canônica é pós-verbal, diferentemente dos argumentos internos de construções passivas canônicas (que é pré-verbal). Já com relação à concordância entre o argumento interno plural e o verbo, a autora constata variação entre os estados brasileiros, sendo o Rio de Janeiro o estado que mostra maior índice de concordância verbal. Nos termos de Cavalcante, a variação entre concordância e não concordância em textos brasileiros se apresenta como o efeito de duas gramáticas distintas: esta questão está relacionada ao que Galves (2001) chama de “competência gramatical” e “competência linguística”.

O capítulo final, de autoria de Mary A. Kato, dá prosseguimento a Kato e Ribeiro (2007, 2009) e busca descrever e analisar as estruturas de foco no século XIX e metade do século XX. Além do corpus do Projeto PHPB, são também utilizados dados de língua falada, dados de criança e material dos afro-descendentes. O quadro teórico no qual a autora se apoia baseia-se na visão cartográfica de Rizzi (1997) e de Belletti (2004a). A proposta é a de que o PB começa a fazer uso estrutural do Foco baixo na periferia do vP no período histórico estudado. Propõe-se ainda que a variação encontrada a partir do século XX é também de natureza estilística.

Nas linhas finais desta apresentação, não poderíamos deixar de mencionar a valiosa contribuição da pesquisadora Ilza Ribeiro, que esteve presente ao longo de toda a história do Projeto PHPB. Ilza, que prematuramente nos deixou, era uma maravilhosa colega e colaboradora, dona de um enorme talento e dedicação, presença marcante, cheia de alegria e disponibilidade, o que é evidenciado de forma indiscutível pelos grupos de pesquisa que formou e que muito têm contribuído para o desenvolvimento da pesquisa sobre a história do português brasileiro. A ela dedicamos este volume.

NOTA: 1  Vale registrar que a renovação dos estudos histórico-diacrônicos do português teve seu marco inicial com o Projeto para a História da Língua Portuguesa – PROHPOR, em 1990, no Departamento de Letras Vernáculas do Instituto de Letras da UFBA, idealizado e coordenado por Rosa Virgínia Mattos e Silva. O PROHPOR serviu de fonte inspiradora para todos os outros projetos que se seguiram, em particular, o Projeto para a História do Português Brasileiro – PHPB, em 1997, sob a coordenação de Ataliba Teixeira de Castilho, e que hoje congrega equipes de investigação em um grande número de universidades brasileiras.


Sonia Cyrino é professora associada e livre-docente pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisadora do CNPq (processo 303742/2013-5) e da Fapesp (processo 012/060789-9). Tem trabalhado em sintaxe comparativa das línguas românicas e mudança diacrônica no português brasileiro.

Maria A. Torres Morais é professora-associada do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP), mestre em Linguística de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutora em Linguística pela Unicamp. Participa dos projetos diacrônicos Para a História do Português Brasileiro (PHPB) e História do Português Paulista (PHPP).