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Marcados para morrer | José de Souza Martins

Publicado em O São Paulo  (Semanário da Arquidiocese de São Paulo), Ano 53, nº 2.697, terça-feira, 13 de maio de 2008, p. A2.


Salvador Dali, “El Cristo de San Juan de la Cruz”

Dom José Luiz Azcona, bispo-prelado da Ilha do Marajó, no Pará, foi nesta semana ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do Ministério da Justiça, em cuja reunião extraordinária denunciou que 300 pessoas no Pará estão sendo ameaçadas de morte. Dentre elas, três bispos: ele próprio, Dom Flávio Giovenale, da diocese de Abaetetuba, e Dom Erwin Krautler, da prelazia do Xingu. Uma sociedade em que acontece isso, disse ele, é “doente, pobre e moribunda”. Dos 300 ameaçados, apenas 100 estão sob proteção policial. Os bispos têm denunciado graves violações de direitos humanos por parte de pessoas que, no geral, permanecem impunes. Essas violações vão desde o uso destrutivo do meio ambiente, como é o caso da pesca predatória de empresas na Ilha, que vem trazendo fome e subnutrição aos moradores, até casos de violência contra populações indígenas, tráfico de drogas, pedofilia (como foi o caso da castração e assassinato de meninos na região de Altamira), e o caso da menina colocada na cadeia com homens adultos, que a violentaram seguidamente. Não raro, a polícia aparece envolvida nesses crimes e as próprias autoridades estão notoriamente intimidadas.

A denúncia não é à-toa. Ainda nesta semana, um dos mandantes do assassinato da Irmã Dorothy Stang, missionária em Altamira, foi absolvido em segundo julgamento. Em julgamento anterior, fora condenado a 24 anos de prisão. Mas, depois disso, o assassino modificou seu depoimento e retirou a denúncia contra o fazendeiro a quem acusava de ser um dos mandantes do crime. Portanto, não basta investigar, processar, julgar e prender os autores ou mandantes desses crimes. Tão escandaloso e irregular é o caso dessa estranha absolvição que ministros do Supremo Tribunal Federal manifestaram espanto e o Ministério Público decidiu investigar o que aconteceu.

A coisa foi mais longe durante a semana. Em Roraima, na reserva indígena Raposa-Serra do Sol, onde vivem várias tribos indígenas, em área que lhes foi legalmente atribuída, grandes fazendeiros ocupam a terra com suas plantações de arroz. Recusam-se a sair da terra, que pertence aos índios. Dez índios foram feridos a tiros a mando de um fazendeiro. Ele próprio e outros envolvidos na violência foram presos.

O cenário é o de um país em que não existe lei nem ordem. As autoridades locais, minoritárias na defesa do direito, em muitas localidades estão permanentemente intimidadas e até ameaçadas. Membros da Igreja, por não se calarem, são ameaçados e mortos. Religiosos, religiosas e agentes de pastoral tem sido ameaçados e mortos nestes anos todos. A violência do poder pessoal de alguns, põe o país inteiro de joelhos. Não é de espantar que um jagunço de Guimarães Rosa, lá no sertão, avise: “E Deus mesmo, se vier, que venha armado!”


José de Souza Martins, um dos mais importantes cientistas sociais do Brasil. Professor titular aposentado de Sociologia e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Pela Contexto, publicou os livros A sociabilidade do homem simples, Sociologia da fotografia e da imagem, Fronteira, O cativeiro da terra, A política do Brasil lúmpen e místico, A Sociologia como aventura, Uma Sociologia da vida cotidiana e Linchamentos.